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6 de maio de 2014

Tobias Barreto - Discurso em mangas de camisa

Observação preliminar sobre o "Discurso em mangas de camisa" — Em Setembro de 1877, apareceu-me a ideia de organizar nesta cidade, e à semelhança de outros, já algures existentes, um pequeno Club Popular. Como todas as lembranças infelizes, que no nosso país têm a propriedade de germinar com a mesma rapidez do alho plantado em noite de S. João, segundo a crença vulgar — a minha ideia prontamente grelou; mas também, com a mesma prontidão, murchou e morreu. Foi esta ainda uma das muitas ilusões de que se tem alentado o meu espírito nesta bela terra onde aliás vim sepultar os dois mais caros objetos do meu coração e da minha fantasia: — minha Mãe e meu futuro!...

Foi ainda uma ilusão, sem dúvida, porém um pouco mais durável, um pouco menos enganadora do que, por exemplo, a realidade das flores, com a sua vida de um só dia: minha ilusão durou quinze.

Por ocasião e a propósito de realizar o meu plano, pronunciei o discurso que aí vai. Publicado logo depois no Jornal do Recife, não deixou de ser então, como era natural, agradável a uns, e displicente a outros. Mas ficou nisto.

Correram os dias, mudaram-se as coisas, e eu entendi que devia, para dar uma feição mais permanente aquele produto de outros tempos, publicá-lo em brochura, como agora o faço, acompanhado de notas, que servem de ilustração ao meu pensamento.

É o que tenho a dizer sobre a história do livrinho. Quanto ao mais, o leitor o julgue, como bom e justo lhe parecer.

Escada, 11 de Fevereiro de 1879.


MEUS senhores! Ainda uma vez, é a mim que incumbe vir expor-vos, e em traços mais visíveis a ideia que se propõe realizar o Club Popular da Escada. A primeira reunião que já fizemos, não foi, nem podia ser inteiramente satisfatória, sob este ponto de vista, porquanto, além da grave dificuldade, que há em falar-se, de modo, eficaz, a um auditório não preparado, acresce que seria então antecipar, sem vantagem para esta sociedade, a explanação detalhada do seu objeto e dos seus intuitos. Bem quer me parecer que semelhante reserva, da minha parte, podia dar direito a se supor que há no fundo deste meu tentame uma certa dose de mistério e intenção secreta, que só pouco a pouco é dado perceber. Mas isto seria errôneo e altamente injusto.

O pensamento que forma a base desta sociedade, como de outras de igual natureza, não se resume — é verdade — numa definição, nem se esgota em centenas de discursos. Só às crianças é lícito imaginar que poderiam conter na palma da mão qualquer estrelinha, que se lhes afigura do tamanho de uma moeda, e apta para um brinquedo. Do mesmo modo, somente aos parvos é permitido crer que o conceito inspirador e dirigente de uma corporação criada com fins humanitários, políticos e sociais, qualquer que seja o círculo de sua ação, é suscetível de abranger-se numa folha de papel, e pode se deixar ver em todos os seus aspectos e atitudes sedutoras, à luz mortiça de velhas frases consagradas ao culto aparatoso dos ídolos do dia.

Porém também é certo, senhores, que quando se evangeliza uma ideia nobre, por mais densa mesmo que seja a nuvem, em que ela venha envolvida, o gênio do povo se encarrega de penetrar-lhe no íntimo e conhecer, por instinto, o seu valor e o seu alcance. Nem eu quero dissimular que uma associação, à guisa da nossa, que tem por principal agente o espírito popular, o ímpeto democrático do século, encerra naturalmente alguma partícula de reação e protesto contra a tirania das coisas, algum germe de rebeldia contra a impudência dos deuses, e importa, como tal, uma gota de assa-fétida na taça de néctar dos poderosos da terra.


Mas isto não desfigura a placidez e serenidade do nosso intento, nem seria motivo suficiente para as chamadas autoridades constituídas nos pedirem contas, por tentativa de insurreição. Tranquilizem-se, pois: se há aqui algum segredo, esse segredo não é para vós; é para aqueles que têm a orelha longa e fina, que no simples ato da livre respiração, que na sístole e diástole do coração do povo percebem sempre um como fluxo e refluxo do mar, que vem engoli-los; é para aqueles, em cuja opinião o menor esforço para sair-se deste sono de abatimento e miséria, é um plano de amotinados, assim como o sangue, que borbulha e jorra impetuoso, pode ser também um revolucionário, na opinião do punhal; é para aqueles, enfim, que tendo boas razões de unirem-se a nós, de estarem conosco, não se dignam, todavia, de aparecer aqui, pelo receio que lhes inspira o contato dos lázaros políticos, quais somos todos nós, os homens do trabalho e não do emprego público, os deserdados da pátria, os excluídos do seu banquete, mas que, a despeito de tudo, guardamos ainda uma esperança no peito e uma seta na aljava!… É para esses, sim, que o exercício de um direito pode tomar as proporções de um fenômeno perigoso, de uma nuvem tenebrosa, que esconde no bojo alguma tempestade. Quanto a nós, porém, não nos incomodemos por isso; e quanto a eles, deixemo-los conjecturarem o que lhes aprouver; e prossigamos em nossa marcha.


Volto a tratar, senhores, do assunto capital do nosso entretenimento, que já foi em síntese indicado a primeira vez que aqui nos reunimos. Esforçar-me-ei, sobretudo, por ser claro. Não compareço entre vós, para fazer-me admirar, mas para fazer-me compreender. A musa que me inspira nesta ocasião é muito modesta, para que me obrigue a trajar a grande gala da linguagem bordada a ouro, e muito menos a ouro francês. Alguma coisa de familiar, alguma coisa de designável por um discurso em mangas de camisa, é o que vos venho apresentar. Se a viagem é curta e aprazível, se fui eu quem vos convidou para ela, não seria uma extravagância, adicionada de uma impolidez, que eu quisesse ir a cavalo, quando os demais vão a pé? Nada, pois, de formalidades, nem jeitos oratórios; nada de espartilho retórico: todo a cômodo, e com toda a calma, vou expor-vos o que nos interessa.


Disse uma vez o padre Lacordaire que a posição mais desfavorável ao orador é quando tem de falar a homens que comem; porém há outra, a meu ver, ainda mais desfavorável: é quando se fala a homens que têm fome, se não se trata dos meios de satisfazê-la, ou ao menos de moderá-la. Tal seria, por certo, a minha posição diante de vós, como iniciador da ideia de um Club Popular, se me viesse à mente a singular lembrança de ocupar-me em outros assuntos, que não fossem os males da nossa vida política, o estado de penúria, e a pior das penúrias, a penúria moral, em que laboramos, o desânimo dos espíritos, a surdez das consciências, em uma palavra, todos os sintomas da doença, que mata as nações, o abandono de si mesmo, o esquecimento de seus direitos, pela falta de justiça e liberdade, de que todos nós, sentimo-nos sequiosos e famintos. Não me compete, nem seria agora oportuno, lançar as vistas no país inteiro, depondo sobre a mesa das dissecações o grande corpo brasileiro, para sujeitar a uma análise rigorosa a totalidade dos seus órgãos. Não interessa mesmo, nem a mim nem a vós, dividindo o Estado em suas partes naturais, tomar a província por objeto de nossa apreciação. Limito-me, portanto, ao município, e ao município concreto, quero dizer, a este de quem somos habitantes. É um fragmento do monstruoso tremó; mas este pedacinho reflete tão bem a nossa face, o nosso caráter nacional, como todo o espelho.



O que mais salta aos olhos, o que mais fere as vistas do observador, o fenômeno mais saliente da vida municipal, que bem se pode chamar o expoente da vida geral do país, é a falta de coesão social, o desagregamento dos indivíduos, alguma coisa que os reduz ao estado de isolamento absoluto, de átomos inorgânicos, quase podia dizer, de poeira impalpável e estéril. Entre nós, o que há de organizado é o Estado, não é a Nação; é o governo, é a administração, por seus altos funcionários na corte, por seus sub-rogados nas províncias, por seus ínfimos caudatários nos municípios; não é o povo, o qual permanece amorfo e dissolvido, sem outro liame entre si, a não ser a comunhão da língua, dos maus costumes e do servilismo.

Os cidadãos não podem, ou melhor não querem combinar a sua ação.


Nenhuma nobre aspiração os prende uns aos outros; eles não têm, nem força defensiva contra os assaltos do poder, nem força intelectual e moral para viverem por si; tal é o fato mais notável que a observação estabelece em geral, porém, que me parece não se manifestar em lugar algum tão carregado de más consequências, como na Escada. Aqui de certo, os habitantes do município, máxime os da cidade, fazem a impressão de viajantes, que se reuniram à noite em uma mesma casa de rancho mas logo que amanheça, cada um tomará o seu caminho, quase sem probabilidade de outra vez se encontrarem. Deste modo de viver à parte, de sentir e pensar à parte, resulta a indiferença, com que olha cada um para aquilo que pessoalmente não lhe diz respeito, e enquanto não chega o seu dia, contempla impassível os tormentos alheios, sem saber que, como disse o poeta:


A todos cabe o mal da humanidade,
De lágrimas e dor fatal convívio,
E aquilo que um tomou sobre seus ombros
É para os outros verdadeiro alívio.



Não fica aí. Essa impassibilidade, que acabo de assinalar, não se revela somente por uma certa ausência de sincero amor e caridade, nas relações puramente humanas, mas também pela falta de patriotismo, nas relações nacionais, pela ausência de senso político e dignidade pessoal, nos negócios locais. É a esta doença moral de que padece o povo da Escada, que o nosso Club propõe-se aplicar um remédio, senão de todo eficaz, ao menos paliativo.


E importa advertir: o Club Popular Escadense não toma por princípio diretor nenhum dos estribilhos da moda, menos que tudo a célebre trilogia: liberdade, igualdade e fraternidade, três palavras que se espantam de se acharem unidas, porque significam tres coisas reciprocamente estranhas e contraditórias, principalmente as duas primeiras. E para que não se me acuse de paradoxia, permiti-me, por um pouco, tratar de demonstrá-lo; o que tanto mais interessa, quanto é certo que não temos por nós nenhuma das três pessoas dessa trindade revolucionária, e por isso muito importa sabermos, se delas uma só nos basta, ou se de todas necessitamos, bem como se é possível à sua consecução.


Mas antes de tudo — que a liberdade e a igualdade são contraditórias e repelem-se mutuamente, não milita dúvida. A liberdade é um direito, que tende a traduzir-se no fato, um princípio de vida, uma condição de progresso e desenvolvimento; a igualdade, porém, não é um fato, nem um direito, nem um princípio, nem uma condição: é, quando muito, um postulado da razão, ou antes, do sentimento. A liberdade é alguma coisa de que o homem pode dizer: eu sou!…; a igualdade alguma coisa de que ele somente diz: quem me dera ser !… A liberdade entregue a si mesma, à sua própria ação, produz naturalmente a desigualdade, da mesma forma que a igualdade, tomada como princípio prático, naturalmente produz a escravidão. A liberdade é aquele estado no qual o homem pode empregar, tanto as suas próprias, como as forças da natureza ambiente, nos limites da possibilidade, para atingir um alvo, que ele mesmo escolhe. Onde, pois, o indivíduo é perturbado no uso de suas forças, e a respeito das ações que não se opõem à liberdade dos outros, nem às necessidades sociais, é sujeito a uma tutela, aí não existe liberdade, nem civil, nem política, nem de outra qualquer espécie. A igualdade é aquele estado da vida pública, no qual não se confere ao indivíduo predicado algum particular, como não se lhe confere particular encargo. Igual independência de todos, ou igual sujeição de todos. O mais alto grau imaginável da igualdade — o comunismo — porque ele pressupõe a opressão de todas as inclinações naturais, é também o mais alto grau da servidão. A realização da liberdade satisfaz ao mais nobre impulso do coração e da consciência humana; a realização da igualdade só pode satisfazer ao mais baixo dos sentimentos: a inveja. Que uma e outra não se harmonizam, que são exclusivas e repugnantes entre si, prova-o de sobra a revolução francesa, que tendo começado em nome da liberdade, degenerou no fanatismo da igualdade, e reduziu-se ao absurdo nas mãos de um déspota. O povo francês assemelhou-se então a uma cidade que se submerge, só ficando de pé uma torre enorme, no meio do lago imenso: a figura de Napoleão! Estava assim, da melhor forma, o ideal de Mirabeau: — la monarchie sur la surface égale. Os indivíduos, ou os povos, que esquecem a liberdade por amor da igualdade, são semelhantes ao cão da fábula, que larga o pedaço de carne que tem na boca, pela sombra que vê na água do rio.


Não falo da classe econômica propriamente dita, porque a sua vida se limita a uma luta pelo capital, e nada tem que ver com as nossas lutas pelo direito. Após então vem o povo, o povo triste e sofredor, em cuja fronte, não poucas vezes, junto ao estigma da infelicidade, por cúmulo de miséria, a sorte imprime também o estigma da ingratidão; o povo que é o número, mas um número abstrato, um número que não é a força; perseguido, humilhado, abatido, a ponto de sobre ele os grandes disputarem e lançarem os dados, para ver quem o possui, como os judeus sortearam a túnica inconsútil do mártir do Calvário.


Não exagero, senhores, é a verdade. O povo brasileiro, ou muito restritamente, o povo da Escada, é tido na conta de uma coisa apropriável, se já não apropriada. Quereis uma prova entre muitas? Eu vos dou. Reparai bem: o ano passado, quando se tratava da qualificação dos votantes desta paróquia, nessa época de baixeza e picardia, que hoje porém, já não me espanta, porque depois disso tenho aqui mesmo testemunhado mais negras misérias, haveis de estar lembrados que os dois partidos em contenda, para mostrar qual deles tinha por si a maioria, levaram à imprensa, com uma ingenuidade infantil, somente a apreciação do número dos engenhos! … — “Há mais engenhos do lado dos liberais”, — diziam estes.— “Nem tantos, como alegam” — diziam os conservadores, e acrescentavam: — “Se os liberais têm alguns engenhos a mais, os dos conservadores, em compensação, são mais extensos, mais povoados, mais ricos…” — Eis aí.


Quereis melhor? Se isto não era uma questão de fábrica, isto é, de maior número de bois, cavalos e escravos, inclusive os cidadãos votantes, já sei que as palavras perderam o seu sentido, ou eu perdi o uso da razão. É pois evidente que, pela própria confissão das partes, está criada na Escada uma açucarocracia, a qual se julga com direito à posse de todos aqueles que vieram tarde e não encontraram um pouco de terra para chamarem sua, e dentro desse domínio manejarem sem piedade o bastão da prepotência.


Tudo isto, repito, senhores, é de uma clareza solar; de tudo isto estamos inteirados por amarga experiência. Porém, é certo que não devemos desanimar. O processo da ação do povo, se me é lícito assim expressar-me, para adquirir a posição perdida, é sumário: uma espécie de interdito unde vi, em matéria política. Ainda não passou ano e dia para intentá-lo, se é que o povo não prefere usar do meio que as leis permitem aos esbulhados da posse de coisas materiais, e que seria absurdo não permitir igualmente aos esbulhados de coisas mais sagradas que uma jeira de terreno, se é que já não chegamos aquele estado de vilania e transtorno dos conceitos morais, em que a vida é preferível à honra, e a propriedade preferível à vida. Esta linguagem eriça cabelos; a mais de um amigo da ordem pode ela parecer o cúmulo da extravagância; e todavia senhores, este meu vinho tem água, não é dele que se costuma beber nos festins da democracia. Seja, porém, como for, não hesito em declará-lo: o povo da Escada, a quem ora me dirijo, deve pôr-se fora da tutela. Tomando conta de si mesmo, e contestando aos poderosos a faculdade de disporem desta cidade, como de uma filial das suas fazendas, cumpre-lhe erguer-se à altura de um poder, com que eles devem contar, em bem ou em mal, e não continuar a ser um algarismo mínimo, um milésimo de força, cujo erro não lhe perturba os cálculos. Ao povo da Escada importa convencer-se que ele não tem para quem apelar, senão para o seu próprio gênio, que não é o da resignação e da humildade. Importa convencer-se que ninguém se lembra dele, ninguém por ele se interessa. Os magnatas do município, por mais que finjam o contrário, não escapam à censura de serem todos acordes no tratar com desprezo a esta localidade. Sirva de prova o fato extraordinário de não haver um só proprietário do termo, qualquer que seja o seu grau de riqueza, que possua dentro da cidade um prédio, digno de si, relativo à sua posição e à influência que por ventura queira ter. Não há um único sequer, que tenha aqui edificado, nem em grande nem em pequena escala. Muitos até existem, que contam nos dedos de uma só das mãos as vezes que têm vindo à sede do município, e ainda fica dedo desocupado para uma pitada de rapé.

Este fenômeno singular e significativo, creio eu, não se repete em outro lugar, pelo menos, com tão claro propósito de desdém votado à população da cidade. Seria fútil e desprezível a objeção que me fizessem, alegando que as despesas da edificação da nova matriz correram quase todas por conta desses mesmos proprietários. Nenhuma dúvida; porém, o que importa? Uma questão de bigotismo, senão antes de alardo pecuniário, ou de simples consideração ao burel de um capuchinho.


Não vos iludais, senhores. Em assunto de popularidade, de homens dedicados à causa popular, a experiência está feita; e sou tentado a dizer-vos, como o francês H. Beyle: — j´invite á se méfier de tout le monde, même de moi… — Aconselho-vos que desconfieis de todo mundo, até de mim mesmo. Confiai somente em vós, que releva levantardes a fronte, nos vossos esforços, que é mister multiplicar, no vosso próprio caráter, que é preciso reformar.


O município da Escada, e como ele, a província, e como a província, o país inteiro, anseia pela vinda de qualquer grande acontecimento. Não sei qual ele seja, mas ele há de vir.


Não sou judeu para crer no Messias, nem tenho a ingenuidade dos primitivos cristãos para acreditar na parousia; mas sou filósofo em confiar nas leis da história, que regulam o destino dos povos; e essas hão de também cumprir-se entre nós. Os cometas não percorrem uma mesma órbita, e as nações não seguem um mesmo caminho. Do país em geral se ergue como que um sussurro de imprecações e lamentos, é o naufrágio que se aproxima. Nada de bater nos peitos, nem de pedir misericórdia. Ninguém nos socorrerá, se o socorro não vier de nós mesmos. Abramos mão de nossos prejuízos, de nossas reservas, de nossos temores, e sejamos um povo livre.


Sim, meus senhores, é a liberdade que nos falta: não aquela que se exerce em falar, bradar, cuspir e macular o próximo, porque esta temo-la de sobra, mas aquela que se traduz em atos dignos e meritórios. Informa-nos escritor competente que no pórtico da nova casa do parlamento alemão existe, entre outros, o retrato de um célebre deputado liberal, Carlos Mathy, debaixo do qual se leem as seguintes palavras suas: A liberdade é o preço da vitória que adquirimos sobre nós mesmos. É esta, senhores, que deve provocar os nossos anhelos, é desta que carecemos: o preço da vitória adquirida, não tanto sobre um governo maléfico e execrável, como antes sobre nós mesmos, sobre os nossos desvarios, e a nossa facilidade em deixarmo-nos intimidar, ou seduzir, pela tentação dos seus demônios.


Entretanto, eu tenho, neste sentido, sombrias apreensões. Talvez já seja tarde, para consegui-lo. Notai bem: tarde, e não cedo. Não pertenço a escola dos teoréticos pacientes, que julgam o povo ainda não maduro para a liberdade. Como se fosse possível aprender a nadar sem meter-se dentro d´água, ou aprender a equitação sem montar a cavalo! Dislates iguais aos dos que querem que o povo passe por um tirocínio da liberdade, sem aliás exercê-la.


O que me causa apreensões, é o contrário disto. Receio que conosco suceda o que se deu com a mais robusta encarnação do bizantinismo moderno: o império de Napoleão III.


Este infeliz regime teve duas fases: uma de marcha em linha reta, na senda do despotismo, sem transigir, nem tergiversar — foi a época da ascensão ao seu apogeu; outra de decadência e enfraquecimento — foi a época das concessões e tentativas liberais, que durou até a queda final do império e o desastre da nação.


De 1852 a novembro de 1860, que é a data do primeiro decreto, onde o despotismo dignou-se de encurtar o diâmetro, e daí, de concessão em concessão, isto é, de fraqueza em fraqueza até 1870, quero dizer até Sedan !… Semelhante fato, senhores, confirma a seguinte verdade: — que qualquer governo corre o risco de cair, quando mente aos seus princípios e torna-se incoerente — assim como, que uma nação, por força do absolutismo, pode chegar ao estado de incapacidade para um regime livre. Desconfio que o nosso Libertas quae sera tamen… será de todo inútil. O Brasil já faz a impressão de um menino de cabelos brancos. Estamos estragados. Quando aprouver ao imperador conceder-nos um pouco mais de ar, não será fora de tempo, não estará já tudo perdido, até mesmo a honra? Tenho medo!… Nem há razão para estranhardes o paralelo. Se existe alguma diferença, é só de desvantagens para o nosso lado. Poucos anos antes da queda do segundo império, dizia dele um pensador político da Alemanha, que sem embargo da constituição, sem embargo de um senado e corpo legislativo, o que tudo não passava de maquinismo burocrático, o governo napoleônico não era mais do que um puro absolutismo, temperado pelo temor das bombas de Orsini.


Muito bem. O escritor disse a verdade, não, porém, toda a verdade. Não era somente o temor das bombas de Orsini que temperava o governo de Napoleão, o qual se pudera chamar de o socialismo no trono. Era também o amor das classes necessitadas, a continua atenção prestada aos interesses do quarto estado, ponto este que sempre constituiu o pensamento diretor do novo bonapartismo.


Sim, o governo absoluto de Napoleão era ainda temperado pelas sociétés de secours mutuels, pelas cités ouvriéres, pela société industrielle de Mulhouse; era ainda temperado pelos fourneaux do príncipe imperial, que forneciam comida aos trabalhadores por baratíssimo preço, pelos banhos gratuitos da capital; pelo Grand Cafe Parisien, levantado à porta de S. Martin, confinando com os quarteirões dos operários, no qual o homem pobre, por poucos soldos, à luz de candelabros e num divã de veludo, podia tomar o seu petit verre. Entretanto, nós outros o que é que temos? Também um puro absolutismo, apenas, porém, temperado… pela batalha de Avahy, pela Fosca, pela bancarrota do Estado, pela corrupção dos ministros, pela miséria do povo e as viagens do rei. Ou será que vós ao menos vós, cidadãos da Escada, tendes motivos de vos julgardes felizes? Vós que dificilmente adquiris o pão quotidiano, com o suor do vosso rosto, vós a quem é aplicável, bem como à maioria do país, o que uma vez disse Gladstone da sua Inglaterra: — Em nove casos de dez, a vida não é mais do que um combate pela existência?! E que combate! Um combate com a natureza, que não raro se vos mostra cruel; um combate com a sociedade, que se vos opõe não menos madrasta; um combate com o capital, que vos olha desconfiado, e não se digna de animar-vos; um combate com o Estado, que multiplica os impostos, aumenta as dificuldades, toma as vistas do futuro; e desta quádrupla luta é que tem de sair os meios de viver e educar os vossos filhos!… Eu não sou socialista: não encaro o número dos que cuidam poder, com um traço de pena, extinguir os males humanos, quase irremediáveis. Mas também não faço coro com a escola de Manchester; não penso que a pobreza é sempre o castigo da preguiça econômica, e que, como tal, qualquer medida de socorro ou alívio para ela, importa premiar os inertes e preguiçosos. Alto e bom som se diz que a Escada é riquíssima, que é um dos mais ricos municípios da província. Quero crer que seja assim. Porém não é estranhável que sendo o município tão abastado, ofereçam aliás os habitantes da cidade, por este lado, aspecto pouco lisonjeiro? Para as vinte mil cabeças da população do termo, esta cidade contribui com três mil, pouco mais ou menos. Sobre estas três mil almas, ou melhor, sobre estes três mil ventres, é probabilíssimo o seguinte cálculo:


90 por cento de necessitados, quase indigentes.

8 por cento dos que vivem sofrivelmente.

1 1/2 por cento dos que vivem bem.

1/2 por cento de ricos em relação.

Semelhante quadro, que pode pecar por excesso de cor de rosa, não é todavia apto para dar do nosso estado econômico outra ideia, senão a de um pauperismo medonho, quando muito, moderado pela esperança de uma sorte de loteria. Nesta triste conjuntura, o que faz o Estado, o que faz a província, o que faz a comuna, em favor da população, para diminuir-lhe os obstáculos e facilitar-lhe o trabalho? Nada mais nem menos do que sobre o costado da besta, já caída de fadiga, arrumar mais alguns quilos, afim de ajudá-la a erguer-se. O Estado e a Província sugam anualmente deste Município, sem falar de outros canais, e só do que corre pelas duas coletorias, de 25 a 30 contos de réis. Eis o que vai no refluxo. Vejamos agora o que vem no fluxo: 10 porcento dessa quantia, que se gasta com a magra instrução pública; 15 porcento, com a justiça e seus apêndices; 20 porcento, com a polícia; 1 a 2 porcento, com o artigo religião; e o resto, a saber, mais da metade, vai perder-se em outras plagas, sendo ainda para notar que as despesas com a polícia local são as únicas que trazem um resultado prático e sensível, pois que o cidadão, em muitas ocasiões, recebe no lombo a benéfica pancada do refle. Por sua vez a Municipalidade exercita, com o mesmo zelo, as suas funções exaurientes, e não se sabe, em última análise, em que se emprega a sua receita. Por toda parte, pois, e sob todos os pontos de vista, os mesmos sintomas mórbidos, as mesmas ânsias, a mesma angústia. As consciências como que perderam o centro de gravidade moral, e balançam-se inquietas em busca de um apoio. A instrução é quase nula, à medida que também é nulo o gosto de instruir-se; e temos em casa o exemplo. Acabais de ouvir que o dispêndio feito com as escolas desta cidade é muito inferior ao que se faz com a polícia: sinal evidente de atraso intelectual. Não limita-se a isso. Segundo a opinião de competentes, a proporção regular entre o número de habitantes de um lugar e o das pessoas que devem frequentar a escola, é de 12 a 15 porcento, se esse lugar quer ter o título de adiantado. Ora, dos três mil espíritos, que dissemos haver aqui dentro, 4 por cento e alguns quebrados é que se encontra realmente de frequência em cinco casas de instrução que existem, sendo somente 7 por cento o número dos matriculados !… Vê-se pois, que ainda entre nós há uma certa má suspeita contra a arte diabólica de ler e escrever, para servir-me da irônica expressão do italiano Aristides Gabelli.


Juntai esse aos demais fenômenos da nossa decadência.


O Club Popular Escadense, meus senhores, não nutre a pretensão, que seria ridícu1a, de vir levantar um dique de resistência contra a corrente de tantos males, cujo ligeiro esboço acabo de fazer; mas tem o intuito de incutir no povo desta localidade um mais vivo sentimento do seu valor, de despertar-lhe a indignação contra os opressores, e o entusiasmo pelos oprimidos. E há momentos, já disse com razão alguém, há momentos, em que o entusiasmo também tem o direito de resolver questões…


Tenho concluído.






14 de abril de 2014

Sylvio Romero - Nosso Maior Mal

De Provocações e Debates - pgs. 102-114

Nosso maior mal... A febre amarela? As secas do norte? O clima tropical? As oligarquias estaduais? A politicagem?

Não; nada disso.

Com serem coisas graves, muito graves até, podem ser atenuadas, a começar pela febre amarela, que vai desaparecendo... Não é, pois, desses flagelos que venho falar. O maior mal do Brasil, e não é cosa que lhe seja exclusivamente peculiar, porque muitos outros povos participam do mesmo achaque: é — pretendermos ser, como nação, como todo político-social, o que não somos realmente.

É um estudo de psicologia popular, de antropo-sociologia nacional que não tem sido feito e do qual darei apenas algumas linhas gerais.

Dá-se com as nações o que se dá com os indivíduos: a maior parte dos erros, dos embaraços, das decepções, das quedas, dos prejuízos, dos desastres e até da total ruína que cada um de nós comete, encontra ou sofre na vida, provém pura e simplesmente, quase sempre, desta coisa tão simples, tão rudimentar, tão indesculpável, — o desconhecimento de nós mesmos.

Cada um pode fazer a experiência e sairá edificado do exame. A inconsciência, em que a maior parte das pessoas vive das lacunas de sua inteligência, da insuficiência de seu saber, dos vícios de seu caráter, da fraqueza de sua vontade, — é a origem da precipitação, da leviandade, da arrogância, dos falsos cálculos, dos passos errados, das loucuras praticadas.

Pois bem; essa espécie de leviandade, de perigosa pedanteria acomete também o espírito coletivo, a índole dos povos. Assaz sofremos, nós os brasileiros, — desse mal.

Afigura-se-me ser ele, não a única fonte de nossos desastres, senão, certo, a mais considerável de todas. Nós brasileiros, entre muitas qualidades de bom quilate, entre muitos predicados merecedores de apreço, temos a fantasia demasiado inflamável, e, em se tratando peculiarmente de nosso valor, de nossas grandezas, de nosso prestígio, de nossas superioridades, de nossos progressos, de nossa cultura, de nosso papel no mundo, perdemos, com a mais singela, íntima e sincera confiança, o senso da realidade, a consciência das coisas e nos julgamos colocados no pináculo entre as nações.

Foi sempre assim. Desde os tempos coloniais, a datar do terceiro século da colonização, esse prazer, essa embriaguez dionisíaca, para falar com Nietzsche, por tudo quanto é nosso, foi a primeira ação reflexa embutida em nosso caráter pelo aspecto geral de nossa natureza.

Foi a primeira dádiva do meio — brilhante, colorido, matizado na terra por primavera imorredoura, no mar pelas doçuras intérminas dum glauco inigualável, no céu pela luz dum sol do qual se pode dizer que colabora com a gente, que preside ao trabalho, e bem merece o canto do poeta que lhe chamou de eterno concidadão que nos ajuda e conforta...

Ação fisiológica inconsciente, ainda reforçada pelos crepúsculos alucinantes de beleza, pelas noites embevecedoras de infinito, no palejar das estrelas, ou embriagadoras de intraduziveis aspirações, nos luares esplêndidos...

Desde Rocha Pitta a descrição do meio está feita e a característica da gente implicitamente traçada. Ao crítico e psicólogo, porém, incumbe a ingrata função de desfazer miragens, reduzir fantasias, dissipar ilusões. Pratica-o quase sempre com mágoa e dor, pois sabe que vai chocar preconceitos e suscitar cóleras e esconjuros. Mas há uma coisa, que para o crítico e psicólogo, sincero consigo mesmo e com o país, está acima de todas as conveniências de momento: a verdade estrita no interesse real, positivo do povo.

Este é o dever dos deveres, o primeiro mandamento do decálogo do patriotismo. Nas linhas que a estas se deverão seguir procurarei despretensiosamente apontar, muito de leve, os males que nos têm, a nós brasileiros, advindo desse, a primeira vista inocente, passatempo de nos darmos por bem mais notáveis e grandiosos do que na realidade somos.

Em todas as esferas das manifestações da atividade nacional se tentará descobrir os efeitos do mal. Política, estado social, direito, finanças, ensino público, literatura, economia nacional, indústrias, tudo passará rapidamente sob as vistas do leitor neste rápido estudo de etiologia popular.

É bem de ver que, neste despretencioso artigo, não poderei dar às teses demonstração documentada, largamente desenvolvida, como fora mister num livro, por exemplo, que tivesse de traçar o quadro real da situação brasileira.

Não poderei oferecer aos leitores senão proposições gerais apoiadas em provas singelas de facílima verificação.

Algumas dessas afirmações, ou melhor, quase todas elas — são simples postulados do bom senso geral que andam aí formulados em todos os espíritos. São proposições evidentes que andam de boca em boca.

Meu trabalho será apenas o de fazer uma síntese, enfiar as contas de um rosário que quase toda a gente tem manipulado.

Nosso maior mal, disse, é não termos a consciência positiva do que realmente somos e, muito ao invés disso, darmo-nos a nossos próprios olhos uma superioridade, uma grandeza, um poderio, um progresso, uma cultura, um adiantamento, uns predicados quase sem par por aí além entre as demais nações.

Dessa terrível inconsciência derivam males gravíssimos em todas as esferas da vida nacional: política, estado social, direito e legislação, finanças, ensino e educação, literatura, economia nacional, indústrias, e moral publica.

Comecemos pela política. Na presunção de sermos tão bons como os melhores, tão distintos como os mais distintos, tão cultos como os mais cultos, tão enérgicos como os mais enérgicos dentre os povos que se acham à frente da civilização moderna, vão-se prender na ordem política muitíssimos desvarios, erros e tropeços que nos têm causado e hão de ainda causar por muito tempo os maiores males. Entre eles avulta a leviandade infantil com que sempre nos temos embalado na doce ilusão de que para nosso andar desassombrado no mundo, fazendo nele a mais brilhante figura, não temos mais que copiar as constituições e leis dos povos mais cultos e transportar para cá as instituições que alhures deram os melhores frutos.

Se tivéssemos verdadeiro juízo e são critério, teríamos logo visto que institutos, aparelhos, órgãos políticos são a frutificação secular, e muitas vezes milenária, de funções nacionais formadas, desenvolvidas, selecionadas nas condições peculiaríssimas do viver de cada nacionalidade; não são coisas que se transplantem ao nosso bel-prazer.

Fazê-lo é dar provas da maior incapacidade criadora, da mais completa ausência de plasticidade para o meneio das coisas políticas. Fazê-lo é tomar a vacuidade retórica, retumbante, palavrosa de nossos parlamentares, que tem sido os chefes de nossos governos ou os inspiradores de nossas leis, como coisa séria, aproveitável, organicamente útil.

Desse formidável parto de nossa incapacidade real, enfeitada apenas em frases que a turba acha bonitas, origina-se o fracasso completo, radical, irreparável, exposto aos olhos da nação, de todas as instituições populares, transplantadas para o nosso meio, sem que presidisse à mudança a mais leve adaptação.

E nota-se até que quanto mais perto do povo devia ficar o instituto para ser por ele mesmo exercido em seu próprio proveito, maior foi a decadência, mais desastrada a ruína.

Deste número são: o júri, as câmaras municipais, as assembleias provinciais; o júri, que no Brasil se transformou em aparelho protetor de assassinos, ou seguro de vida para ladrões; as câmaras municipais, horrendas cavernas de Caco, terríveis ratoeiras para arrancar aos povos os últimos vinténs, enriquecendo pelo país em fora verdadeiros clãs locais de mandões insaciáveis; as assembleias provinciais mudadas agora em congressos e senados Estaduais, são guardas avançadas ao serviço das oligarquias, cujos interesses defendem com a espoliação muitas vezes, dos haveres das populações e sempre com o sequestro das liberdades públicas.

Não é só: entre os males de ordem política, devidos à nossa presunção de nos supormos o que não somos, destacam-se as duas constituições políticas, copiadas de modelos que somos incapazes de seguir com segurança e vantagens práticas: — a Constituição Imperial, liberalizante em excesso, não condicionada ao nosso meio; a Constituição Republicana, copiada por alguns fantasistas desarticulados, talentos inorgânicos, que sempre tiveram a simploriedade de confundir palavras com ideias...

Daí a pasmosa decadência do parlamentarismo, que se foi pouco a pouco transformando no famoso sorites de Nabuco de Araújo É famoso, na história do Brasil, o "sorites de Nabuco" – silogismo com o qual o primeiro Nabuco, José Thomás, descreveu o sistema político do Segundo Reinado: "O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí está o sistema representativo do nosso país". O sorites de hoje seria: "O presidente chama parceiros porque não consegue presidir sozinho; estes parceiros abrem espaço para a malversação e as falcatruas; a malversação e as falcatruas levam o governo a perder o rumo e a afundar num mar de escândalos" (Fonte: Revista Veja nr.1906). Daí esse presidencialismo repulsivo, de cujo ventre brotaram vinte e uma oligarquias ou satrapias fechadas, irredutíveis, verdadeiros clãs como os do País do Roubo em Marrocos, menos a coragem, o pitoresco e a poesia que vive ali nos tipos e nas coisas.

E há pior: como estamos cada vez mais a pensar que o Brasil se reduz todo ele a esta velha carcaça do Rio de Janeiro, que, como as mulheres de Jerusalém acreditavam que se salvavam só com o tomarem trajes garridos, imagina que só com a abertura de avenidas tem atingido todas as grandezas, no mais triste abandono jaz cada vez mais a educação política das massas, cujo caráter se tem, ao contrário, cada vez mais inconvenientemente aviltado.

Tem sido uma verdadeira lição de coisas: tem-se levado sistematicamente às massas a convicção que isto de vida política é coisa com que elas nada têm a ver; é um negócio de poucos, de alguns escolhidos, de raros privilegiados.

Basta o Bloco empoleirado no centro, os sátrapas nos Estados e está tudo feito...

Ora, a política, segundo a melhor definição que dela se conhece, — é, como ciência, a teoria da vontade popular, como prática, a realização desta vontade.

O Brasil desmente em absoluto tal verdade. A prova temo-la irrefragável neste fato vergonhosíssimo, cheio dos mais alarmantes perigos: a indiferença, o desinteresse, o alheamento completo em que andam as massas, o povo, as gentes todas de alto a baixo por seu viver como nação, seus destinos coletivos, suas funções históricas, suas aspirações ideais.

Dirigidos andamos por incapazes que exercem a sinistra função de lobrigar na política desta grande terra apenas as suas vantagens particulares, as suas vantagens deles, Bloquistas, Sátrapas, Oligarcas, Senadores, Ministros, Deputados... Mandões, Chefes de clã, tigres famintos que arrocham os pulsos aos povos, sufocam neles todos os nobres impulsos de ideal para melhor devorar-lhes as carnes.

Desta suprema degradação, origina-se o criminoso, aviltante e miserando abandono em que andam as eleições políticas no Brasil, o espetáculo mais desprezível que se possa deparar nos anais da humanidade.

Isto mesmo é que obriga os hediondos especuladores que entre nós têm o nome de Chefes Políticos, Chefes de Partidos, Estadistas, cuja ciência consiste em povoar o solo por decreto, criando repartições onerosíssimas; fomentar a agricultura, enviando vadios e nulos à Índia, à China e ao Japão para que nos ensinem como se planta café e se fabrica açúcar...

Um cúmulo !

Trataram de incutir o mais possível na crença do povo que ele é dos mais cultos e adiantados existentes na terra. Ora, se a multidão já é assim, que não será a elite dirigente? Que não serão os super-homens dessa gente? Verdadeiros gênios, assombrosas capacidades, aptos para meter no chinelo os maiores guias de povos que tem existido, os Alexandres, os Césares, os Fredericos, os Cromwels, os Bismarcks...

Mas a realidade é bem outra: ignorância, pauperismo, miséria, opressão reinam por toda a parte. A demonstração prática deste monstruoso estado das populações nacionais, desde a serra de Parima, ao norte, até o Quaraí, ao sul, é a coisa mais fácil, mais simples que possa existir e quase não precisa ser feita, porque está na consciência geral, e até na da gente do Bloco...

E é porque vivemos na fantasia de ser um grande, poderoso, riquíssimo, avançado, cultíssimo povo, tanto que (é a crença geral...) fazemos sempre a primeira figura em todos os congressos mundiais, e é porque, como consequência dessa miragem, julgamos os nossos estadistas prodigiosas cabeças, dignas da veneração universal, que, como os loucos que se julgam reis, não damos fé do deplorável estado em que nos debatemos.

Este sistema de iludir e consolar é, consciente ou inconscientemente, mantido pelos poderosos desfrutadores da política e do trabalho do povo brasileiro.

Não lhes convém que a nação abra os olhos; porque, no dia em que ela tiver a vista clara de sua deplorável situação, a vista clara produzida, não por essa instrução palavrosa, superficial, falsa, cheia de mentiras, aleatória de toda a masculinização e dignificação da vontade que se inocula sistematicamente nas gerações novas, mas por uma educação em que se incuta na alma dos moços que o caráter é a primeira força social, porque nesse dia ruirá por terra a infamante politicagem bloquista que nos avilta.

Não haverá mister de derramar sangue: basta que alguns milhares de homens, em dia de eleição, saiam à rua decididos a exercer com firmeza, coragem, verdade, o seu direito de voto, no intuito de expulsar das altas posições executivas e parlamentares os nulos, os prevaricadores, os traficantes.

Mas assim como para fazer uma fritada são indispensáveis os ovos, para fazer uma boa eleição são de primeira necessidade — quem vote e em quem se vote. É o que não temos, nunca tivemos e não teremos tão cedo no Brasil: porque nós não temos tido até agora, e não a teremos facilmente uma disciplina deliberada do caráter nacional, e a consciência iniludível de uma função histórica a desempenhar.

Temos estado nas condições descritas pelo poeta, de:

— Sermos um povo rebanho
Sem aprisco e sem pastor.

O que disse da política, desvirtuada entre nós por nossa fatuidade de querermos passar por um grande povo, estando ainda muito longe de sê-lo, o que importa dizer que deixamos de curar de nossos males, correndo atrás de aventuras, o que disse da política se repete, mutatis mutandis, de tudo o mais. É a esse vezo que, na ordem social, em vez de cuidar de arrancar da barbárie as populações do interior, de espalhar o ensino e fortalecer a educação, tratamos apenas de embelezar a capital, principalmente para com isso iludir o estrangeiro.

É a esse vezo que devemos a importação de um socialismo espúrio que ainda nos há de trazer dias aflitíssimos. Pelo que toca ao direito e legislação, é a esse desvario que devemos o não estudar as necessidades práticas de nossas gentes e entrarmos a copiar atabalhoadamente as leis estrangeiras, sem a menor adaptação a nosso atrasadíssimo estado de cultura, além de outros disparates ainda maiores.

No que se refere ao ensino público, é a nossas ilusórias fumaças de possuirmos enormes talentos, eminentíssimas capacidades, proficientíssimos mestres, que havemos de atribuir o desprezível estado de abatimento em que ele tem caído.

Para a mais elementar instrução primária, como para a mais elevada e superior, passando pela secundária e pelas aplicações técnicas, há muito deveriam os governos ter contratado no estrangeiro mestres de verdade. É principalmente o que nos falta. Disto havemos mister muito mais do que de fortes e poderosos couraçados.

Na literatura é a mania de tão bom como tão bom — que leva toda a gente a desprezar os assuntos nacionais, nossas tradições, nossos costumes, todos os aspectos em suma, d'alma do povo em todas as classes para andar a sonhar com os eslavos de Tolstói os escandinavos de Ibsen, os germanos de Nietzsche...

O mais elementar bom senso está a indicar que desses grandes mestres o que nos aproveita é o próprio exemplo, isto é, estudar a alma de nossas gentes, como eles estudaram as de seus patrícios.

No que se refere a finanças, basta mostrar que é onde a fátua pretensão que venho apontando tem acumulado maiores destroços. Todas essas loucuras de impostos sobre impostos, lançados às populações já exaustas; todos esses empréstimos sobre empréstimos, malbaratados em obras de luxo; essas exposições fantásticas e mentirosas; essas embaixadas de ouro; essas encomendas de formidandos navios de guerra, iguais ou maiores que os da Inglaterra, dos Estados Unidos e da Alemanha, não tem outra origem: aparentarmos o que não somos, — custe o que custar... É o cúmulo da insânia.

Quanto à vida econômica geral da nação, os desastres acumulados pela fatal moléstia são terribilíssimos. Desacostumou-se, com o sistema dum protecionismo criminoso, o povo do exercício natural das suas atividades econômicas conforme as zonas do país: numas o pastoreio, noutras a pesca, nestas a mineração; naquelas a lavoura do café ou do algodão, ou do tabaco, ou da cana, ou dos cereais; aqui os frutos arborescentes, além as plantas extrativas, etc. etc.

Em lugar disto, teima-se em criar uma indústria de estufa, que só serve para pagarmos caríssimo os mais grosseiros artefatos. São os nossos progressos...

Claro é que todas estas teses poderiam ser largamente esplanadas. Meu fito foi apenas formular, de leve, a lista dos prejuízos que sobre nós desencadeia a mais fatal de nossas moléstias, o nosso maior mal: a mania de passar pelo que não somos.


Janeiro de 1908.


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