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10 de julho de 2015

A mente petista

Carlos U Pozzobon

“Se a única esperança do niilismo reside no pensamento de que milhões de escravos possam um dia constituir uma humanidade que seria livre para sempre, então a história não é mais do que um sonho desesperado. O pensamento histórico foi libertar o homem de uma submissão para um paraíso; mas esta libertação demandava dele a mais absoluta sujeição à evolução histórica. O homem se refugia na permanência do partido da mesma forma que ele antigamente se prostrava perante o altar. Por isso que a Era que ousa clamar ser a mais rebelde que jamais existiu apenas oferece uma opção entre os vários tipos de conformismo. A paixão real do século vinte é a servidão”. (Albert Camus, L'Homme Revolté, p. 234).


Existem três fatores interligados que compõem o universo da mente petista. Discorrer sobre eles se torna um imperativo para o entendimento do Brasil em sua crise mais profunda desde a tomada do poder em 2002 pelo PT.

  • Negativismo
  • Niilismo
  • Negação da riqueza

Como se pode explicar o somatório de fatores negativos que nos cercam? A vida social do homem se forma com o aprendizado para lidar com os fatos negativos que lhe ocorrem necessariamente como uma condição de estar no mundo . Os perigos do meio, a violência social ou da natureza, os maus tratos, a falta de solidariedade e de oportunidade, a rejeição social, as humilhações, as dificuldades impostas por serviços públicos degradados, a insensibilidade, e tantas pequenas coisas que nos levam cotidianamente a detestar os outros, vão se acumulando no espírito e servem de substrato para moldar uma psicologia específica.

Se em nossa biografia, o entendimento da sociedade implica em uma série infindável de fatos negativos que vão decantando um acumulado de decepções proporcionais às dificuldades do meio em que estamos inseridos, o repertório mais popular e abrangente de crítica social capaz de abraçar os fatos negativos se chama marxismo.


Marxismo como contraponto ao Negativismo

O marxismo oferece uma explicação para os males sociais e uma solução profética para a sua superação. Para que o negativismo não seja conduzido para um fim escatológico em que presente e futuro se confundam, torna-se imperativo que ele seja contrabalançado por uma visão otimista do futuro. Este é o segundo elemento importante oferecido pelo marxismo: um antídoto para o suicídio individual cultivado na certeza de uma esperança profética, de uma libertação vindoura.

No profetismo marxista, sabemos que os males do capitalismo serão superados pelo advento de uma nova sociedade que libertará os homens oprimidos pelo egoísmo e crueldade de seus semelhantes. Para que o negativismo não se transforme em um pessimismo autodestruidor, ele precisa ser equilibrado com um futuro promissor, e só o marxismo consegue oferecer esta esperança por ser construído como uma plataforma de ideias edificantes. Isto lhe confere um enorme poder de expansão e penetração.


Niilismo

No entendimento da sociedade capitalista, chama-se niilismo a combinação de negativismo associado ao futurismo doutrinário moralizador reivindicado para uma nova sociedade, com outros ingredientes, entre os quais o sectarismo e o dogmatismo. O longo percurso da prática política vai absorvendo muito mais elementos para que setores sociais possam repeti-los sempre com o mesmo padrão.

O niilismo não é um sentimento novo. Afonso Arinos de Melo Franco em "Um Estadista na República", fala sobre o meio intelectual de seu pai, Afrânio, ainda no final do Império:

“Quando ingressou na Faculdade de São Paulo, distantes estavam os tempos da boemia literária, quando Álvares de Azevedo simbolizava aquela espécie de niilismo juvenil, atitude de frenético desespero em que homens de vinte anos se compraziam nos ambientes byronianos, envenenando o corpo com álcool e a alma com furiosas abstrações sobre o amor e a morte.

A geração estudantina da abolição e da República estava mais interessada pelo desabamento de velhos edifícios jurídicos e sociais e pela construção dos novos, que os deviam substituir. Naturalmente que tinham também os seus boêmios literários, como Bilac ou Raimundo Correia. Mas mesmo neles a boemia tomava um aspecto diferente, ligava-se ardorosamente às lutas do tempo, à vida real que em volta fervilhava.

Quando esta vida real apresenta interesse afetivo e dramático, como no tempo deles e no nosso, os melhores espíritos são atraídos para ela. O pélago dos dramas subjetivos, das especulações abstratas, dos sofrimentos morais gerados pelos movimentos espontâneos da alma, e não pela ação do mundo exterior, são consequências dos períodos de estabilidade social e política, de cristalização conservadora.

No advento da República os estudantes eram espíritos mais políticos e jurídicos que literários. A tradição político-jurídica do Império, e principalmente a admirável influência pessoal do imperador, no sentido de basear tanto quanto possível o Estado brasileiro num governo de opinião, facilitavam o desenvolvimento da vocação daqueles rapazes sem grandes obstáculos nem reações.

A vida de Afrânio é um exemplo disto. Foi naturalmente, sem nunca lutar com o meio, que ele pôde expandir seus dotes de jurista político. Coisa que a larga fase da ditadura republicana vedou aos moços da geração de 1930.

A geração de estudantes de hoje (1944) foi também chamada ao realismo porque o Brasil atravessa novamente uma fase aguda de possibilidades e experiências. Mas, ao contrário da de Afrânio, suas inclinações naturais pela vida pública são entravadas pela mais formidável reação que conheceu o país. Isto poderá dar aos seus componentes um caráter violento e revolucionário, que não conheceram os bacharéis da República, cujo espírito construtivo não se afastou nunca da prudência e da moderação.

A tendência dos moços para a violência de ideias e atitudes depende da reação que seja oposta à evolução natural do seu pensamento. Neste ponto o exemplo do tzarismo russo é demonstrativo. A fúria da sua reação formou, mais que qualquer outra causa, a mocidade revolucionária da geração bolchevista.

Inutilmente se procuraria fenômeno semelhante na Inglaterra ou nos Estados Unidos contemporâneos. Eis por que nos parece pesada a responsabilidade que assume no Brasil o poder que, neste ano de 1944, procura conter a evolução natural do pensamento político dos moços. Talvez os transforme numa geração de violentos revolucionários”. (p. 174)

O revolucionarismo de que fala o autor surge com a própria dinâmica das mudanças impostas pela revolução industrial do primeiro capitalismo e seus desdobramentos sobre as comunidades humanas. As transformações criadas pelas estradas de ferro, telégrafo e bens de consumo industriais produziram uma mudança qualitativa do ser humano que continua até hoje.

O futuro se torna ocupado pelo evolucionismo fundado em descobertas que não podemos prever, mas que sabemos que mudarão a sociedade e, com isso, abrem as consciências para a aceitação de novas ideias, muitas das quais extremamente pessimistas sobre o presente e altamente positivas sobre o futuro, consolidando assim a consciência niilista.

O pessimismo tem suas razões de existir quando o próprio mundo nos fornece dados comparativos sobre as assimetrias de desenvolvimento entre as nações e a incapacidade das sociedades atrasadas de se colocarem em marcha rumo ao crescimento pelo deteriorado modelo político que abrigam e o extraordinário quadro de rapacidade social dos modelos estatais no consumo da poupança nacional.


Perseguição à riqueza

Um terceiro fator, no entanto, tem sua origem no mundo ibérico e sua particularidade guarda uma importância capital na constituição do niilismo latino-americano: trata-se da visão da riqueza como pertencente, de direito e moral, a entes coletivos que a distribuem para toda a sociedade. A riqueza pertencente aos entes coletivos seria o valor moral primitivo mais renitente em nossa formação social, no passado conhecidos como o Império, a Igreja, empresas públicas e uns poucos cidadãos delegados por ordem expressa do imperador.

Na moral medieval, a Igreja seria o instrumento social destinado a coroar o ascetismo e a virtude como valores fundamentais ao espírito humano, e a riqueza uma necessidade de todas as ordens religiosas para custear os encargos administrativos de sua imensa máquina de condução das almas nas comunidades humanas.

Por esta moral, a riqueza em mãos privadas corria o risco de subverter esses valores e conduzir os homens à dissipação, à luxúria, à ostentação petulante, ao comportamento arrogante e à soberba. Contendo-se a riqueza individual, acreditava-se controlar os vícios humanos.

Os evangelhos já pregavam a hostilidade aos ricos, e quando estes foram identificados com os judeus, o estigma permaneceu ao longo dos séculos. Para evitar a perda dos valores religiosos produzidos pela riqueza, criou-se a Inquisição na forma de tribunal pelo qual somente o socialismo real viria a utilizar os mesmos métodos de obtenção da "verdade".

No livro Inquisição e Cristãos Novos, Antonio José Saraiva nos dá uma ideia do anticapitalismo tricentenário que moldou a consciência brasileira:

“De todas as ocupações da vida, quase nenhuma é tão condenável – se a observarmos segundo as regras da religião – como a mais comum, quero dizer a das pessoas que trabalham para ganhar dinheiro quer pelo negócio quer por outros meios honestos. Os meios mais legítimos, humanamente falando, de enriquecer, são contrários não só ao espírito do Evangelho, mas também às interdições literais de Jesus Cristo e de seus apóstolos” (p. 207).

A importância do papel da riqueza na formação da mente petista tem sido negligenciada: no passado colonial, os excedentes da exploração açucareira eram postos em circulação através de empréstimos, mas a aplicação de juros para remunerar o capital era vista como o pecado da usura, e o combate e perseguição aos financistas judeus ou cristãos-novos era uma forma de saldar dívidas para os devedores e de apropriação de bens por parte da Igreja. A fúria contra o capital financeiro existe até hoje e encontra raízes profundas na mente petista provinda desse passado reacionário.

Antonio Paim, historiador que tentou decifrar a nossa história através dos valores que se opuseram ao capitalismo, mostra como a perseguição à riqueza privada foi capaz de colocar em declínio nossa superioridade mundial na produção de açúcar no século XVIII. Em seu livro, Momentos Decisivos da História do Brasil, ele traz à luz os valores de nosso passado obscuro:

“A ação da Contra-Reforma se completa pela chamada pregação dos moralistas do século XVIII, que se incumbem de difundir no seio da elite a mais rigorosa condenação da riqueza. E assim se completa a nossa opção pela pobreza, que irá consistir numa das mais sólidas tradições da cultura brasileira” (p. 69).

Por esse passado nada altruístico podemos ver como a Teologia da Libertação tem suas raízes na negação da riqueza produzida pelo empreendimento individual, e na defesa intransigente de todas as iniciativas que sejam mantenedoras da pobreza. A pobreza da população era conservada como relicário do exemplo da vida cristã autêntica e do desapego material, e sua similaridade com o socialismo real não poderia ser escondida, razão pela qual este segmento atrasado da Igreja tem ligações emocionais e identidades práticas com o socialismo.

Qualquer empreendimento suspeito de prosperidade logo arregimenta os doutrinadores da fé com os apóstolos do ateísmo em frente única. Nas eleições de 2010, o candidato do PSOL, Plínio de Arruda Sampaio, disse abertamente na TV que era contra a transposição do rio São Francisco porque a chegada de água no nordeste iria alterar as condições de vida da população miserável, tornando suas terras invejadas pelo agronegócio que logo iria comprá-las e tornar os miseráveis atuais em trabalhadores agrícolas. A igreja da teologia da libertação formou fileiras em sua causa com bispos liderando a mobilização contra a ameaça de abundância no nordeste.

Este terceiro fator – a noção de riqueza – se casou com os outros dois de forma a cristalizar os valores de nossa nacionalidade e sua enorme resistência à modernidade. Em todo o processo social, os valores nascem da herança cultural, e depois se internalizam nas preferências dos indivíduos, para mais tarde se materializarem nas suas escolhas.

A vitória eleitoral e a popularidade do PT na conquista do poder tinham os fatores combinados: crítica social impiedosa do passado, responsabilizando todos os males às pessoas identificadas como elites e não às instituições; grande esperança no futuro, atribuída aos poderes messiânicos do novo presidente e sua equipe, combinando crítica negativista com utopia voluntarista, e uma promessa de superar todos os males pela correção dos vícios do estado comandado por uma fração preparada com iniciativas qualificadas de “vontade política”, criando uma narrativa que iria construir a mais espetacular crise social de todos os tempos: a inversão dos valores éticos e morais como jamais se viu em momento algum no Brasil.

Como provar que a riqueza entendida como um ente coletivo que deve ser distribuída para a sociedade faz parte de nossos valores primitivos que vão formular as preferências e depois as escolhas individuais?

Basta se observar os fatores ligados ao imaginário do brasileiro no tocante a riqueza: quase todo o brasileiro acha que o país é extremamente rico, mas, ao mesmo tempo, extremamente explorado por grupos gananciosos que fazem a riqueza desaparecer para o exterior misteriosamente por contrabando ou por esperteza, sendo a causa de nossa miséria.

Neste imaginário botocudo, a riqueza é um bem estático, que se acomoda em arcas cheias de ouro e que poderia servir a todos e não aos malditos capitalistas que a exploram. A visão da riqueza como uma montanha dourada transparece nos discursos das pessoas magnetizadas pelos metais raros como o nióbio e o petróleo. Não se entende a riqueza como um bem em circulação, mas algo de que se deseja apoderar por um ato de pirataria política, isto é, obtenção de um privilégio de exploração por meio de monopólio. O monopólio é visto como representante da nacionalidade e da moral pública do bem comum, não como um obstáculo à geração de riqueza.

Nem mesmo a água é vista como um bem em circulação. Depois que se criou a Agência Nacional de Águas no ano 2000 por iniciativa do Congresso, os integrantes desta agência começaram a espalhar a ideia de que a água iria acabar no mundo todo e, especialmente no Brasil, onde a extração do subsolo deveria ser acompanhada do pagamento de um imposto para que o estado estivesse suficientemente preparado para intervir quando de sua escassez. Que alguém possa acreditar neste bizantinismo pode parecer estupefaciente, no entanto está no discurso de seus membros. E a crise hídrica em SP permitiu avaliar que na opinião de muita gente estava estampada a noção de que a água pode se esgotar para sempre na natureza.

Agindo apenas pelos instintos do nosso arcaísmo histórico, as pessoas acham melhor guardar uma riqueza para o futuro do que explorá-la no presente por encargo de empresas privadas, mesmo sabendo que quase a metade voltaria para o estado na forma de impostos: o horror ao lucro e o ódio ao empreendimento privado são mais fortes do que a obtenção de recursos através dos impostos e empregos gerados pela produção.

Quando se argumenta que a nossa riqueza petrolífera poderia gerar uma exportação diária de uns 5 milhões de barris, e um “government take” de uns 150 bilhões de dólares anuais, as pessoas começam a suar frio e o pânico se instala em suas mentes com a imagem de um país transformado em cemitério pela exaustão de seus tesouros naturais.

As novas ideias de perseguição da riqueza estão presentes na moral ecológica, onde se coloca o interesse de conservação da natureza em sua forma primitiva como mais importante e autêntica do que a utilização desta mesma natureza para o enriquecimento de particulares. O meio ambiente, o ambientalismo petista, é a fonte mais importante da geração de ideias perseguidoras da riqueza como uma manifestação reacionária do passado colonial.

Trata-se do princípio de que um particular não gera outro particular e que o coletivo não é formado pelo agregado de particulares, mas por outra instância que está acima e além dos seres individuais: o estado onipotente. Por esta mentalidade, somente o estado pode ser essa agregação orgânica de indivíduos, e este sentimento arcaico ensinado nas escolas foi o responsável pela propagação e triunfo do niilismo petista.


Estado dentro do Estado: um exemplo

Qual a prova que correlaciona a riqueza com os valores sociais anticapitalistas?

Considere o sistema tributário brasileiro. Seu funcionamento talvez explique por que somos um povo atrasado e sem vias de se modernizar. O sistema tributário brasileiro constitui uma ditadura dentro do país, exercido por uma elite profissional que se encarrega da arrecadação de recursos para as várias instâncias das administrações em caráter absolutista.

As decisões tributárias são feitas pelas comunidades de secretários estaduais, pelas secretarias municipais da fazenda e pelo complexo de entidades em volta da Receita Federal. Os tributos não são mediados pelo sistema legislativo e tampouco contidos pelo sistema judicial.

Portarias, normas, instruções e decretos são emitidos por estes órgãos apenas sob consenso da autoridade política executiva, e sua obediência tem caráter de lei. Os impostos, taxas e contribuições não são elimináveis a menos que se possa declará-los inconstitucionais, e, uma vez em vigor, o judiciário não tem autoridade para questioná-los.

Quem define os crimes tributários são os próprios órgãos tributários, a quem se deve apelar e pelo qual se é julgado. Um imposto que foi declarado inconstitucional, como a taxa de lixo em São Paulo, nunca foi devolvido aos contribuintes. E quem estava em débito permanece na dívida ativa do município.

Trata-se do mesmo procedimento da Inquisição e dos processos de Moscou: no sistema soviético os procuradores acusavam, julgavam e executavam a sentença. Não havia a mediação de organismos separados.

A questão tributária não se limita ao recolhimento de tributos. Ela vai muito além da mera arrecadação. Seu papel principal consiste na certificação, na autorização e licenciamento, todos enfeixados em uma lógica de pureza que se comprova com um troca-troca de certidões em que um órgão demanda uma informação de outro órgão pelo qual o requerente deve ser o intermediário da transação e para cuja finalidade não existe nenhuma obrigatoriedade cronológica do órgão fornecedor, que dispõe de liberdade para requisitar quaisquer recursos que achar pertinente à consecução do interesse privado. E, naturalmente, estes recursos terminam na realidade do mundo subdesenvolvido: a indústria da propina.

A tão conhecida burocracia brasileira mereceria prêmios para universitários sequiosos por diplomas de doutorado. Explicar as motivações por trás de procedimentos que não existem em países adiantados poderia fornecer um entendimento muito mais acurado de nossa natureza social do que as centenas de teses acadêmicas pífias que são produzidas anualmente em nossas universidades. Ao longo dos últimos cinquenta anos, até ministérios foram criados para desburocratizar o país, mas seu resultado tem sido muito pequeno e circunscrito à obtenção de documentos pessoais.

Esta incrustação do mundo colonial na organização da sociedade brasileira tem implicações tremendas na formação do país. Funciona como um tribunal de exceção para industriais, pequenos empreendedores, comerciantes e proprietários rurais.

Pelo sistema tributário podemos entender como um modelo político se molda em uma sociedade onde toda a carreira política implica em patrimonialismo e no costume de colocar os interesses do estado acima dos cidadãos no discurso, e o estado a serviço dos seus apropriadores na prática. Que importância tem a gastança irresponsável dentro das casas legislativas se existe uma estrutura estatal que tem poderes especiais para resolver estes excessos?

O poder discricionário de um órgão arrecadador de estado implica em assumir a responsabilidade pela manutenção do próprio estado, e os organismos fazendários são incumbidos de resolver déficits, obter empréstimos e negociar dívidas, desde que não tenham o poder de dissolução do que possam entender como além e excedente do próprio estado, que neste caso está a cargo do sistema político.

O poder tributário como entidade autônoma dentro do estado brasileiro forma um dos itens da cesta dos fatores que fazem nosso PIB representar apenas 1/5 quando comparado a um país que passou pelo desenvolvimento capitalista independente. A musculatura deste poder está contida dentro de uma burocracia que funciona como uma estrutura asfixiante de toda atividade produtiva legal.

Os órgãos tributários agem como tribunais amparados por uma complexa legislação que obriga as empresas a um contingente enorme de funcionários e advogados para manter a ordem na contabilidade, e, mesmo assim, são frequentemente chantageadas por quadrilhas de fiscais com a capacidade de dissolução do aparelho comercial ou industrial criado a duras penas pelos empreendedores privados.

Como estes 'raids' burocráticos sedimentados ao longo das décadas não passam para os livros de história, o saldo de destruição que se pode apurar consiste na verdade inescondível dos números da renda per capita. Nenhum país do mundo tem tantas micro, pequenas e médias empresas frustradas em poucos meses de vida: o empreendedor que inicia um negócio logo aprende que não está trabalhando para a sua atividade fim. Sua energia fica canalizada para ser um mandalete de órgãos burocráticos cujas exigências parecem ter sido inventadas para ser resolvidas nas propinas.

Existe uma relação entre a Inquisição e a Fiscalização que deveria ser explorada por nossos historiadores de ideias, ao estilo dos seguidores de Antonio Paim. Estas duas instâncias históricas da brasilidade estão sedimentadas na consciência niilista.

Como se pode desconfiar, trata-se de um sistema que não mantém relações com o capitalismo, já que não lhe serve de apoio, mas vive de sua própria rapacidade, e cuja estrutura se concilia com a dos regimes do socialismo real.

E, falando em socialismo real, considere este texto do século XVIII, escrito por D. Luis de Souza em carta ao rei de Portugal, em uma época ainda insuspeita de socialismo:

“... que os corregedores e juízes do crime fossem obrigados a dar ao presidente do paço e ao regedor das justiças todos os meses uma exata lista das pessoas que moram nos seus bairros, e de que vivem, e como vivem, das companhias que frequentam, e dos que de novo nele vêm habitar para não consentir neles nem ociosos, nem vagabundos, porque são os que matam e roubam por não serem conhecidos.

E como as mulheres públicas são pela maior parte a causa destes desatinos, não as sofrerão nas suas jurisdições, de maneira que o regedor das justiças lhes fará culpa das desordens, que nelas acontecerem. Da mesma sorte tomarão conhecimento dos pobres, para lhes não permitir que peçam esmola senão os que absolutamente, e de nenhuma sorte não puderem trabalhar. Isto se pratica em Holanda, onde não se vê um só pobre, nem às portas das igrejas, nem nas ruas, que embaraçam os que vão à missa, e os que por eles passam. A caridade é muito louvável, e o Evangelho a recomenda, mas não para que contribua para a ociosidade, de que resulta toda a espécie de vício”.

Controlar as pessoas em seus bairros passou do mundo medieval para o socialismo real incólume, e não espanta que esta moral seja defendida por marxistas e padres da teologia da libertação. E o que dizer da noção de bolsa família quando correlacionada com a caridade?


A crença no estado salvador

A mente petista, sendo herdeira dessas tradições reacionárias, ainda precisa ser nutrida de novos elementos para se cristalizar em seu niilismo devastador da razão. O outro elemento consiste na forma de entendimento do estado como uma crença de que é a única estrutura social pela qual todos os problemas humanos podem ser resolvidos. Basta apenas que ele se molde de maneira a realizá-las. Se o estado deixar de ser apropriado pela classe dominante e se transformar em prestador de serviços para os despossuídos, a sociedade vai se curar de todos os seus males. E toda a atividade política se reduz à luta da pureza dos representantes estatais contra a impureza dos agentes sociais privados.

Esta foi a base moral do medievalismo, e, no entanto, está vivíssima na esquerda brasileira. Basta lermos os jornais diariamente para acompanhar o desfile de transgressões efetuadas contra as normas estabelecidas pelo estado condutor. Existem épocas em que o gosto popular se especializa em difamar a classe política, mas o produto que elabora, as normas e leis, são vistas como algo sagrado a que se deve obediência e respeito, nunca faltando uma dose de hostilidade moral a todos os seus transgressores.

O estado tem sido o aporte por onde se realiza o patrimonialismo e a carreira mais segura para ascensão social em um país assoberbado por crises periódicas. Na medida em que o petismo se transforma em ideologia do estado, ele tem o papel de difundir para a sociedade uma narrativa moral idealizada na questão dos direitos humanos, nas relações trabalhistas e nas obrigações sociais que são conduzidas de forma Inquisitória pela responsabilização solidária de todas as empresas privadas no ciclo de produção.

Tais valores contaminaram a ciência jurídica, onde diariamente se veem exemplos destas aberrações: um fabricante doméstico de camisas que tenha irregularidades em suas relações trabalhistas e tributárias, arrasta para o representante e distribuidor da marca o peso de sua culpabilidade.

A combinação de niilismo e estatismo tem mais efeitos arrasadores. A consciência petista funciona como construtora de narrativas apropriadas ao uso das circunstâncias, e recusa toda e qualquer experiência prática ou ponderação fora de sua lógica artificial. E quanto maior se torna a ruptura entre as evidências da realidade e os argumentos de sua narrativa, mais entorpecedores se tornam os argumentos.

O desprezo para com o mérito é o caso mais eloquente. Já se disse no século XIX que os povos que desdenham do mérito são aqueles que nunca se sentiram ameaçados.

O altruísmo embevecido pela justiça social cria uma rede de solidariedade que não existe em pessoas com ideias independentes. Parece que a mente niilista exige demonstrações reiteradas de solidariedade para se sentir autenticada em cada conjuntura adversa. São as únicas pessoas que, quando criticadas pessoalmente, recorrem a abaixo-assinados de apoio e desagravo. Trata-se de um psiquismo coletivo do vitimismo.

Certas florações psicossociais são próprias do niilismo: a questão da imigração é uma delas. Todo o niilista acha natural que um país rico seja invadido por imigrantes, na maioria das vezes sem qualificação para o mercado tecnológico, pelo simples motivo de que a solidariedade humana se alia ao propósito de subversão da ordem social, uma vez que uma sociedade rica contendo uma parcela muito pequena de pobres, ao aumentar seu contingente de pobres invasores, cria uma base de apoio para grupos radicais.


Niilismo x Tecnologia

Um dos elementos mais comuns do niilismo consiste em ser completamente insensível à tecnologia. Parece que se trata de uma síndrome secundária do estatismo. Todos os anos temos melhores automóveis, celulares, fármacos, bens de consumo, etc, mas isso não os comove a achar que o mundo capitalista esteja melhorando.

Todos querem os benefícios, mas não as condições que organizam a sociedade tecnológica e fazem com que contingentes inteiros de profissionais se dediquem ao esforço tecnológico de fazer a vida melhor para a humanidade. Parece paradoxal que frente a todas as demonstrações de progresso seguidas pelos países asiáticos, com diferentes empuxos ideológicos, tal esforço não seja sequer discutido entre os integrantes de uma agremiação que controla o poder no Brasil há mais de 12 anos. A confissão de que são consciências preparadas apenas para parasitar o estado pode ser vista pela relação que eles mantêm com o embalo das revoluções tecnológicas sucessivas que vamos acumulando década após década.

Um indivíduo niilista é capaz de ser salvo da morte em um hospital por um medicamento israelense de última geração e na semana seguinte estar nas ruas defendendo uma manifestação do Hamas pretensamente representativa dos palestinos. Esta capacidade de ser incoerente se explica pela rejeição ao individualismo sem tutelas.

Os filósofos e demais humanistas niilistas não só mantêm um desdém para com a tecnologia, como acham que ela não existe para melhorar as práticas da vida produtiva. Ao contrário, elas são desenvolvidas para as empresas ganharem dinheiro, sendo, evidentemente, esta postura altamente condenável porque acreditam que o estado pode fazer a mesma coisa desinteressadamente. É um momento em que se fundem os valores medievais com o socialismo latino-americano.

Como o capitalismo produz e distribui itens que exigem dinheiro, a mente niilista aspira a obtenção de todos os bens pelo simples direito de cidadania. E este benefício não sendo possível para todos, só pode ser concedido pelo estado que pratique a discriminação pelo uso de um critério elitista, onde uma nomenklatura tenha estes benefícios pelo direito autoatribuído de representar a classe proletária, o que explica subsidiariamente a rapacidade de tais agremiações políticas quando no poder.

De um lado, o desprezo pela meritocracia da sociedade tecnológica capitalista: de outro, a entronização do mérito como submetido à posição do indivíduo na estrutura política do partido. A consolidação do estado como uma crença provém de uma distorção dos princípios básicos de economia social e da impotência frente à diversidade do mundo científico e tecnológico, quando não da inadequação ao conhecimento gerada nos primeiros anos de uma escola calamitosa que deformou as novas gerações para qualquer possibilidade de abstração intelectual. Por trás de um niilista existe um histórico de frustrações que somente uma utopia futurista pode compensar.


Sectarismo

O resultado de tudo isso na mente humana consiste na criação de um dos fenômenos mais notórios dos nossos tempos: o sectarismo político. O sectarismo se consolida na consciência como uma forma de pensar extremamente hostil às ideias que estão fora da bitola das pregações políticas e que pertencem em geral a adversários odiados.

O pensamento alheio é sentido com hostilidade, como um perigo que é preciso esconjurar com as narrativas de demonização preparadas para servir de alívio às próprias contradições e bode expiatório para ocultação dos fracassos. Não existem escrúpulos com a verdade. As pessoas são tomadas de prejulgamentos preparados por publicistas partidários e perdem a capacidade de investigação independente.

O sectarismo atua como uma aversão totalizante representada em um conjunto de ideias identificáveis com uma ideologia, em um partido político, ou em uma organização social.

O sectarismo funciona na articulação de narrativas adequadas ao enfrentamento das contradições. Por exemplo: como as notícias dos jornais são frequentemente contrárias às opiniões de um grupo político, este precisa desqualificá-las em bloco, sem que necessite responder a cada caso. Para isso, usa o argumento de que se trata de uma imprensa burguesa que atua em consonância com a classe dominante. Tudo se passa como se a burguesia possuísse um comitê central que deliberasse as “verdades” que passariam a circular pelos jornais sob seu domínio. Trata-se de uma projeção de seu próprio comportamento como grupo para o resto da sociedade.

A desqualificação generalizada dispensa a necessidade de enfrentar cada argumento em separado e, ao mesmo tempo, estreita os laços de coesão de um grupo com sua doutrina, onde os eventos são tratados como necessariamente enquadrados nas constantes reiterações de suas premissas: a luta de classes, os interesses das classes dominantes, a corrupção dos empresários, a indiferença do capitalismo pela pobreza, etc.


A crítica da sociedade como projeção de si mesmo

O descontentamento dos adversários com a corrupção praticada no governo petista como política de cooptação é respondido por seus porta-vozes como se esses críticos odiassem os pobres, ou se sentissem incomodados pela presença cada vez maior da população de baixa renda nos aeroportos do país.

De fato, existe uma relação freudiana de desejo com aquilo que se critica nos outros quando tais críticas ultrapassam as raias dos fatos e se estendem a uma confissão de ódio subjetivo. Quando lemos o livro A Nomenklatura de Michael Volensky verificamos que na antiga União Soviética, existiam salas VIPs para os dirigentes (de qualquer nível) do partido e da burocracia soviética não apenas em aeroportos, mas também em estações ferroviárias.

Os dirigentes eram recebidos com carros e motoristas para os conduzirem aos seus destinos. Não se misturavam com o povo, em nenhuma hipótese. Até para descer dos aviões havia o ritual de separação de dirigentes dos demais tripulantes. Além de lojas e supermercados particulares para as famílias. Mas, quando caíam em desgraça, eram frequentemente acusados de ter perdido a “ligação com as massas”.

“Em 1621 o frade inquisidor de Lisboa dizia que eram Judeus não só os que praticavam o judaísmo, mas também os que contrariavam o Santo Ofício. Esta declaração remete aos nossos tempos de ortodoxia em que se diz que são contrarrevolucionários todos os que se opõem ao governo revolucionário” (Saraiva, op. Cit).

O sectarismo permite entender como certos tipos de crítica emanam de uma consciência que psicopaticamente deseja usufruir daquilo que denuncia nos adversários como uma perversão moral. Um desejo secreto de luxúria se esconde por trás não apenas dos miseráveis de Joãozinho Trinta, mas também dos ideólogos da miséria como podemos constatar do crescimento dos bens materiais da elite petista.

E a necessidade de esconder o fracasso do presente consiste na obsessão de criticar o passado com todas as falsificações possíveis e inevitáveis para uma mente contaminada pela fé ardente no coletivismo.

Para provar que o espírito de colaboração é muito mais poderoso em países onde a cultura do individualismo é preponderante, bastaria levantar os dados do sucesso de empreendimentos criados com a adesão voluntária de participantes, como os milhares de softwares de código aberto, a Wikipédia e tantos outros. Não por acaso, a cultura do individualismo sempre foi prestigiada como sinônimo de liberdade, pois é dela que emana o empreendimento independente, cujo sucesso está marcado pelo apoio espontâneo e sem tutela de sua comunidade.

O fracasso do PT como partido e ideologia não se limita a um fenômeno isolado e pertencente a um grupo de ativistas desmiolados. Têm razão os críticos que o equiparam a um fenômeno social genuinamente nacional. O PT representa o conglomerado mais vasto de um modo de pensar calcado em valores arcaicos que estão em todas as instâncias de nossas instituições degradadas pela ignorância de querer mudar os outros sem mudar a si mesmas.

Não é necessário perguntar às professoras que fazem o magistério nas ruas se elas se acham responsáveis pelo declínio de nossos índices de educação para termos as respostas de nossas calamidades históricas das quais o petismo foi o mais colossal acolhedor, e que o Brasil carregará como mais uma herança maldita ao longo das décadas que virão.

A longa permanência no poder das ideias petistas serve de aferição crepuscular de uma cultura imersa em um obscurantismo cultivado nas cátedras.

Estaria o Brasil condenado a reviver uma nova expulsão dos jesuítas como fez Pombal em Portugal, na segunda metade do século XVIII, como única forma de permitir que as ideias iluministas transitem em nosso território?

Só o tempo dirá se nossa crise será capaz de criar a unidade necessária para enfrentar os maiores inimigos da inteligência e do saber: o professorado petista herdeiro de nosso passado jesuítico adaptado ao niilismo marxista.

Em todo caso, o legado do petismo não desaparecerá tão cedo de nossa sociedade. Ele persistirá enquanto o estado brasileiro conseguir se manter à margem da modernidade e impedir que a sociedade desabroche em todo o esplendor de seus talentos esbulhados.

O socialismo brasileiro tem suas raízes no mundo jesuítico e numa interpretação do cristianismo ainda coagulado pela moral medieval. Enquanto estes valores não desaparecerem, o populismo pode mudar de nome, mas sempre vai nos assombrar com sua tragédia de decomposição moral e colapso econômico.


6 de maio de 2014

Tobias Barreto - Discurso em mangas de camisa

Observação preliminar sobre o "Discurso em mangas de camisa" — Em Setembro de 1877, apareceu-me a ideia de organizar nesta cidade, e à semelhança de outros, já algures existentes, um pequeno Club Popular. Como todas as lembranças infelizes, que no nosso país têm a propriedade de germinar com a mesma rapidez do alho plantado em noite de S. João, segundo a crença vulgar — a minha ideia prontamente grelou; mas também, com a mesma prontidão, murchou e morreu. Foi esta ainda uma das muitas ilusões de que se tem alentado o meu espírito nesta bela terra onde aliás vim sepultar os dois mais caros objetos do meu coração e da minha fantasia: — minha Mãe e meu futuro!...

Foi ainda uma ilusão, sem dúvida, porém um pouco mais durável, um pouco menos enganadora do que, por exemplo, a realidade das flores, com a sua vida de um só dia: minha ilusão durou quinze.

Por ocasião e a propósito de realizar o meu plano, pronunciei o discurso que aí vai. Publicado logo depois no Jornal do Recife, não deixou de ser então, como era natural, agradável a uns, e displicente a outros. Mas ficou nisto.

Correram os dias, mudaram-se as coisas, e eu entendi que devia, para dar uma feição mais permanente aquele produto de outros tempos, publicá-lo em brochura, como agora o faço, acompanhado de notas, que servem de ilustração ao meu pensamento.

É o que tenho a dizer sobre a história do livrinho. Quanto ao mais, o leitor o julgue, como bom e justo lhe parecer.

Escada, 11 de Fevereiro de 1879.


MEUS senhores! Ainda uma vez, é a mim que incumbe vir expor-vos, e em traços mais visíveis a ideia que se propõe realizar o Club Popular da Escada. A primeira reunião que já fizemos, não foi, nem podia ser inteiramente satisfatória, sob este ponto de vista, porquanto, além da grave dificuldade, que há em falar-se, de modo, eficaz, a um auditório não preparado, acresce que seria então antecipar, sem vantagem para esta sociedade, a explanação detalhada do seu objeto e dos seus intuitos. Bem quer me parecer que semelhante reserva, da minha parte, podia dar direito a se supor que há no fundo deste meu tentame uma certa dose de mistério e intenção secreta, que só pouco a pouco é dado perceber. Mas isto seria errôneo e altamente injusto.

O pensamento que forma a base desta sociedade, como de outras de igual natureza, não se resume — é verdade — numa definição, nem se esgota em centenas de discursos. Só às crianças é lícito imaginar que poderiam conter na palma da mão qualquer estrelinha, que se lhes afigura do tamanho de uma moeda, e apta para um brinquedo. Do mesmo modo, somente aos parvos é permitido crer que o conceito inspirador e dirigente de uma corporação criada com fins humanitários, políticos e sociais, qualquer que seja o círculo de sua ação, é suscetível de abranger-se numa folha de papel, e pode se deixar ver em todos os seus aspectos e atitudes sedutoras, à luz mortiça de velhas frases consagradas ao culto aparatoso dos ídolos do dia.

Porém também é certo, senhores, que quando se evangeliza uma ideia nobre, por mais densa mesmo que seja a nuvem, em que ela venha envolvida, o gênio do povo se encarrega de penetrar-lhe no íntimo e conhecer, por instinto, o seu valor e o seu alcance. Nem eu quero dissimular que uma associação, à guisa da nossa, que tem por principal agente o espírito popular, o ímpeto democrático do século, encerra naturalmente alguma partícula de reação e protesto contra a tirania das coisas, algum germe de rebeldia contra a impudência dos deuses, e importa, como tal, uma gota de assa-fétida na taça de néctar dos poderosos da terra.


Mas isto não desfigura a placidez e serenidade do nosso intento, nem seria motivo suficiente para as chamadas autoridades constituídas nos pedirem contas, por tentativa de insurreição. Tranquilizem-se, pois: se há aqui algum segredo, esse segredo não é para vós; é para aqueles que têm a orelha longa e fina, que no simples ato da livre respiração, que na sístole e diástole do coração do povo percebem sempre um como fluxo e refluxo do mar, que vem engoli-los; é para aqueles, em cuja opinião o menor esforço para sair-se deste sono de abatimento e miséria, é um plano de amotinados, assim como o sangue, que borbulha e jorra impetuoso, pode ser também um revolucionário, na opinião do punhal; é para aqueles, enfim, que tendo boas razões de unirem-se a nós, de estarem conosco, não se dignam, todavia, de aparecer aqui, pelo receio que lhes inspira o contato dos lázaros políticos, quais somos todos nós, os homens do trabalho e não do emprego público, os deserdados da pátria, os excluídos do seu banquete, mas que, a despeito de tudo, guardamos ainda uma esperança no peito e uma seta na aljava!… É para esses, sim, que o exercício de um direito pode tomar as proporções de um fenômeno perigoso, de uma nuvem tenebrosa, que esconde no bojo alguma tempestade. Quanto a nós, porém, não nos incomodemos por isso; e quanto a eles, deixemo-los conjecturarem o que lhes aprouver; e prossigamos em nossa marcha.


Volto a tratar, senhores, do assunto capital do nosso entretenimento, que já foi em síntese indicado a primeira vez que aqui nos reunimos. Esforçar-me-ei, sobretudo, por ser claro. Não compareço entre vós, para fazer-me admirar, mas para fazer-me compreender. A musa que me inspira nesta ocasião é muito modesta, para que me obrigue a trajar a grande gala da linguagem bordada a ouro, e muito menos a ouro francês. Alguma coisa de familiar, alguma coisa de designável por um discurso em mangas de camisa, é o que vos venho apresentar. Se a viagem é curta e aprazível, se fui eu quem vos convidou para ela, não seria uma extravagância, adicionada de uma impolidez, que eu quisesse ir a cavalo, quando os demais vão a pé? Nada, pois, de formalidades, nem jeitos oratórios; nada de espartilho retórico: todo a cômodo, e com toda a calma, vou expor-vos o que nos interessa.


Disse uma vez o padre Lacordaire que a posição mais desfavorável ao orador é quando tem de falar a homens que comem; porém há outra, a meu ver, ainda mais desfavorável: é quando se fala a homens que têm fome, se não se trata dos meios de satisfazê-la, ou ao menos de moderá-la. Tal seria, por certo, a minha posição diante de vós, como iniciador da ideia de um Club Popular, se me viesse à mente a singular lembrança de ocupar-me em outros assuntos, que não fossem os males da nossa vida política, o estado de penúria, e a pior das penúrias, a penúria moral, em que laboramos, o desânimo dos espíritos, a surdez das consciências, em uma palavra, todos os sintomas da doença, que mata as nações, o abandono de si mesmo, o esquecimento de seus direitos, pela falta de justiça e liberdade, de que todos nós, sentimo-nos sequiosos e famintos. Não me compete, nem seria agora oportuno, lançar as vistas no país inteiro, depondo sobre a mesa das dissecações o grande corpo brasileiro, para sujeitar a uma análise rigorosa a totalidade dos seus órgãos. Não interessa mesmo, nem a mim nem a vós, dividindo o Estado em suas partes naturais, tomar a província por objeto de nossa apreciação. Limito-me, portanto, ao município, e ao município concreto, quero dizer, a este de quem somos habitantes. É um fragmento do monstruoso tremó; mas este pedacinho reflete tão bem a nossa face, o nosso caráter nacional, como todo o espelho.



O que mais salta aos olhos, o que mais fere as vistas do observador, o fenômeno mais saliente da vida municipal, que bem se pode chamar o expoente da vida geral do país, é a falta de coesão social, o desagregamento dos indivíduos, alguma coisa que os reduz ao estado de isolamento absoluto, de átomos inorgânicos, quase podia dizer, de poeira impalpável e estéril. Entre nós, o que há de organizado é o Estado, não é a Nação; é o governo, é a administração, por seus altos funcionários na corte, por seus sub-rogados nas províncias, por seus ínfimos caudatários nos municípios; não é o povo, o qual permanece amorfo e dissolvido, sem outro liame entre si, a não ser a comunhão da língua, dos maus costumes e do servilismo.

Os cidadãos não podem, ou melhor não querem combinar a sua ação.


Nenhuma nobre aspiração os prende uns aos outros; eles não têm, nem força defensiva contra os assaltos do poder, nem força intelectual e moral para viverem por si; tal é o fato mais notável que a observação estabelece em geral, porém, que me parece não se manifestar em lugar algum tão carregado de más consequências, como na Escada. Aqui de certo, os habitantes do município, máxime os da cidade, fazem a impressão de viajantes, que se reuniram à noite em uma mesma casa de rancho mas logo que amanheça, cada um tomará o seu caminho, quase sem probabilidade de outra vez se encontrarem. Deste modo de viver à parte, de sentir e pensar à parte, resulta a indiferença, com que olha cada um para aquilo que pessoalmente não lhe diz respeito, e enquanto não chega o seu dia, contempla impassível os tormentos alheios, sem saber que, como disse o poeta:


A todos cabe o mal da humanidade,
De lágrimas e dor fatal convívio,
E aquilo que um tomou sobre seus ombros
É para os outros verdadeiro alívio.



Não fica aí. Essa impassibilidade, que acabo de assinalar, não se revela somente por uma certa ausência de sincero amor e caridade, nas relações puramente humanas, mas também pela falta de patriotismo, nas relações nacionais, pela ausência de senso político e dignidade pessoal, nos negócios locais. É a esta doença moral de que padece o povo da Escada, que o nosso Club propõe-se aplicar um remédio, senão de todo eficaz, ao menos paliativo.


E importa advertir: o Club Popular Escadense não toma por princípio diretor nenhum dos estribilhos da moda, menos que tudo a célebre trilogia: liberdade, igualdade e fraternidade, três palavras que se espantam de se acharem unidas, porque significam tres coisas reciprocamente estranhas e contraditórias, principalmente as duas primeiras. E para que não se me acuse de paradoxia, permiti-me, por um pouco, tratar de demonstrá-lo; o que tanto mais interessa, quanto é certo que não temos por nós nenhuma das três pessoas dessa trindade revolucionária, e por isso muito importa sabermos, se delas uma só nos basta, ou se de todas necessitamos, bem como se é possível à sua consecução.


Mas antes de tudo — que a liberdade e a igualdade são contraditórias e repelem-se mutuamente, não milita dúvida. A liberdade é um direito, que tende a traduzir-se no fato, um princípio de vida, uma condição de progresso e desenvolvimento; a igualdade, porém, não é um fato, nem um direito, nem um princípio, nem uma condição: é, quando muito, um postulado da razão, ou antes, do sentimento. A liberdade é alguma coisa de que o homem pode dizer: eu sou!…; a igualdade alguma coisa de que ele somente diz: quem me dera ser !… A liberdade entregue a si mesma, à sua própria ação, produz naturalmente a desigualdade, da mesma forma que a igualdade, tomada como princípio prático, naturalmente produz a escravidão. A liberdade é aquele estado no qual o homem pode empregar, tanto as suas próprias, como as forças da natureza ambiente, nos limites da possibilidade, para atingir um alvo, que ele mesmo escolhe. Onde, pois, o indivíduo é perturbado no uso de suas forças, e a respeito das ações que não se opõem à liberdade dos outros, nem às necessidades sociais, é sujeito a uma tutela, aí não existe liberdade, nem civil, nem política, nem de outra qualquer espécie. A igualdade é aquele estado da vida pública, no qual não se confere ao indivíduo predicado algum particular, como não se lhe confere particular encargo. Igual independência de todos, ou igual sujeição de todos. O mais alto grau imaginável da igualdade — o comunismo — porque ele pressupõe a opressão de todas as inclinações naturais, é também o mais alto grau da servidão. A realização da liberdade satisfaz ao mais nobre impulso do coração e da consciência humana; a realização da igualdade só pode satisfazer ao mais baixo dos sentimentos: a inveja. Que uma e outra não se harmonizam, que são exclusivas e repugnantes entre si, prova-o de sobra a revolução francesa, que tendo começado em nome da liberdade, degenerou no fanatismo da igualdade, e reduziu-se ao absurdo nas mãos de um déspota. O povo francês assemelhou-se então a uma cidade que se submerge, só ficando de pé uma torre enorme, no meio do lago imenso: a figura de Napoleão! Estava assim, da melhor forma, o ideal de Mirabeau: — la monarchie sur la surface égale. Os indivíduos, ou os povos, que esquecem a liberdade por amor da igualdade, são semelhantes ao cão da fábula, que larga o pedaço de carne que tem na boca, pela sombra que vê na água do rio.


Não falo da classe econômica propriamente dita, porque a sua vida se limita a uma luta pelo capital, e nada tem que ver com as nossas lutas pelo direito. Após então vem o povo, o povo triste e sofredor, em cuja fronte, não poucas vezes, junto ao estigma da infelicidade, por cúmulo de miséria, a sorte imprime também o estigma da ingratidão; o povo que é o número, mas um número abstrato, um número que não é a força; perseguido, humilhado, abatido, a ponto de sobre ele os grandes disputarem e lançarem os dados, para ver quem o possui, como os judeus sortearam a túnica inconsútil do mártir do Calvário.


Não exagero, senhores, é a verdade. O povo brasileiro, ou muito restritamente, o povo da Escada, é tido na conta de uma coisa apropriável, se já não apropriada. Quereis uma prova entre muitas? Eu vos dou. Reparai bem: o ano passado, quando se tratava da qualificação dos votantes desta paróquia, nessa época de baixeza e picardia, que hoje porém, já não me espanta, porque depois disso tenho aqui mesmo testemunhado mais negras misérias, haveis de estar lembrados que os dois partidos em contenda, para mostrar qual deles tinha por si a maioria, levaram à imprensa, com uma ingenuidade infantil, somente a apreciação do número dos engenhos! … — “Há mais engenhos do lado dos liberais”, — diziam estes.— “Nem tantos, como alegam” — diziam os conservadores, e acrescentavam: — “Se os liberais têm alguns engenhos a mais, os dos conservadores, em compensação, são mais extensos, mais povoados, mais ricos…” — Eis aí.


Quereis melhor? Se isto não era uma questão de fábrica, isto é, de maior número de bois, cavalos e escravos, inclusive os cidadãos votantes, já sei que as palavras perderam o seu sentido, ou eu perdi o uso da razão. É pois evidente que, pela própria confissão das partes, está criada na Escada uma açucarocracia, a qual se julga com direito à posse de todos aqueles que vieram tarde e não encontraram um pouco de terra para chamarem sua, e dentro desse domínio manejarem sem piedade o bastão da prepotência.


Tudo isto, repito, senhores, é de uma clareza solar; de tudo isto estamos inteirados por amarga experiência. Porém, é certo que não devemos desanimar. O processo da ação do povo, se me é lícito assim expressar-me, para adquirir a posição perdida, é sumário: uma espécie de interdito unde vi, em matéria política. Ainda não passou ano e dia para intentá-lo, se é que o povo não prefere usar do meio que as leis permitem aos esbulhados da posse de coisas materiais, e que seria absurdo não permitir igualmente aos esbulhados de coisas mais sagradas que uma jeira de terreno, se é que já não chegamos aquele estado de vilania e transtorno dos conceitos morais, em que a vida é preferível à honra, e a propriedade preferível à vida. Esta linguagem eriça cabelos; a mais de um amigo da ordem pode ela parecer o cúmulo da extravagância; e todavia senhores, este meu vinho tem água, não é dele que se costuma beber nos festins da democracia. Seja, porém, como for, não hesito em declará-lo: o povo da Escada, a quem ora me dirijo, deve pôr-se fora da tutela. Tomando conta de si mesmo, e contestando aos poderosos a faculdade de disporem desta cidade, como de uma filial das suas fazendas, cumpre-lhe erguer-se à altura de um poder, com que eles devem contar, em bem ou em mal, e não continuar a ser um algarismo mínimo, um milésimo de força, cujo erro não lhe perturba os cálculos. Ao povo da Escada importa convencer-se que ele não tem para quem apelar, senão para o seu próprio gênio, que não é o da resignação e da humildade. Importa convencer-se que ninguém se lembra dele, ninguém por ele se interessa. Os magnatas do município, por mais que finjam o contrário, não escapam à censura de serem todos acordes no tratar com desprezo a esta localidade. Sirva de prova o fato extraordinário de não haver um só proprietário do termo, qualquer que seja o seu grau de riqueza, que possua dentro da cidade um prédio, digno de si, relativo à sua posição e à influência que por ventura queira ter. Não há um único sequer, que tenha aqui edificado, nem em grande nem em pequena escala. Muitos até existem, que contam nos dedos de uma só das mãos as vezes que têm vindo à sede do município, e ainda fica dedo desocupado para uma pitada de rapé.

Este fenômeno singular e significativo, creio eu, não se repete em outro lugar, pelo menos, com tão claro propósito de desdém votado à população da cidade. Seria fútil e desprezível a objeção que me fizessem, alegando que as despesas da edificação da nova matriz correram quase todas por conta desses mesmos proprietários. Nenhuma dúvida; porém, o que importa? Uma questão de bigotismo, senão antes de alardo pecuniário, ou de simples consideração ao burel de um capuchinho.


Não vos iludais, senhores. Em assunto de popularidade, de homens dedicados à causa popular, a experiência está feita; e sou tentado a dizer-vos, como o francês H. Beyle: — j´invite á se méfier de tout le monde, même de moi… — Aconselho-vos que desconfieis de todo mundo, até de mim mesmo. Confiai somente em vós, que releva levantardes a fronte, nos vossos esforços, que é mister multiplicar, no vosso próprio caráter, que é preciso reformar.


O município da Escada, e como ele, a província, e como a província, o país inteiro, anseia pela vinda de qualquer grande acontecimento. Não sei qual ele seja, mas ele há de vir.


Não sou judeu para crer no Messias, nem tenho a ingenuidade dos primitivos cristãos para acreditar na parousia; mas sou filósofo em confiar nas leis da história, que regulam o destino dos povos; e essas hão de também cumprir-se entre nós. Os cometas não percorrem uma mesma órbita, e as nações não seguem um mesmo caminho. Do país em geral se ergue como que um sussurro de imprecações e lamentos, é o naufrágio que se aproxima. Nada de bater nos peitos, nem de pedir misericórdia. Ninguém nos socorrerá, se o socorro não vier de nós mesmos. Abramos mão de nossos prejuízos, de nossas reservas, de nossos temores, e sejamos um povo livre.


Sim, meus senhores, é a liberdade que nos falta: não aquela que se exerce em falar, bradar, cuspir e macular o próximo, porque esta temo-la de sobra, mas aquela que se traduz em atos dignos e meritórios. Informa-nos escritor competente que no pórtico da nova casa do parlamento alemão existe, entre outros, o retrato de um célebre deputado liberal, Carlos Mathy, debaixo do qual se leem as seguintes palavras suas: A liberdade é o preço da vitória que adquirimos sobre nós mesmos. É esta, senhores, que deve provocar os nossos anhelos, é desta que carecemos: o preço da vitória adquirida, não tanto sobre um governo maléfico e execrável, como antes sobre nós mesmos, sobre os nossos desvarios, e a nossa facilidade em deixarmo-nos intimidar, ou seduzir, pela tentação dos seus demônios.


Entretanto, eu tenho, neste sentido, sombrias apreensões. Talvez já seja tarde, para consegui-lo. Notai bem: tarde, e não cedo. Não pertenço a escola dos teoréticos pacientes, que julgam o povo ainda não maduro para a liberdade. Como se fosse possível aprender a nadar sem meter-se dentro d´água, ou aprender a equitação sem montar a cavalo! Dislates iguais aos dos que querem que o povo passe por um tirocínio da liberdade, sem aliás exercê-la.


O que me causa apreensões, é o contrário disto. Receio que conosco suceda o que se deu com a mais robusta encarnação do bizantinismo moderno: o império de Napoleão III.


Este infeliz regime teve duas fases: uma de marcha em linha reta, na senda do despotismo, sem transigir, nem tergiversar — foi a época da ascensão ao seu apogeu; outra de decadência e enfraquecimento — foi a época das concessões e tentativas liberais, que durou até a queda final do império e o desastre da nação.


De 1852 a novembro de 1860, que é a data do primeiro decreto, onde o despotismo dignou-se de encurtar o diâmetro, e daí, de concessão em concessão, isto é, de fraqueza em fraqueza até 1870, quero dizer até Sedan !… Semelhante fato, senhores, confirma a seguinte verdade: — que qualquer governo corre o risco de cair, quando mente aos seus princípios e torna-se incoerente — assim como, que uma nação, por força do absolutismo, pode chegar ao estado de incapacidade para um regime livre. Desconfio que o nosso Libertas quae sera tamen… será de todo inútil. O Brasil já faz a impressão de um menino de cabelos brancos. Estamos estragados. Quando aprouver ao imperador conceder-nos um pouco mais de ar, não será fora de tempo, não estará já tudo perdido, até mesmo a honra? Tenho medo!… Nem há razão para estranhardes o paralelo. Se existe alguma diferença, é só de desvantagens para o nosso lado. Poucos anos antes da queda do segundo império, dizia dele um pensador político da Alemanha, que sem embargo da constituição, sem embargo de um senado e corpo legislativo, o que tudo não passava de maquinismo burocrático, o governo napoleônico não era mais do que um puro absolutismo, temperado pelo temor das bombas de Orsini.


Muito bem. O escritor disse a verdade, não, porém, toda a verdade. Não era somente o temor das bombas de Orsini que temperava o governo de Napoleão, o qual se pudera chamar de o socialismo no trono. Era também o amor das classes necessitadas, a continua atenção prestada aos interesses do quarto estado, ponto este que sempre constituiu o pensamento diretor do novo bonapartismo.


Sim, o governo absoluto de Napoleão era ainda temperado pelas sociétés de secours mutuels, pelas cités ouvriéres, pela société industrielle de Mulhouse; era ainda temperado pelos fourneaux do príncipe imperial, que forneciam comida aos trabalhadores por baratíssimo preço, pelos banhos gratuitos da capital; pelo Grand Cafe Parisien, levantado à porta de S. Martin, confinando com os quarteirões dos operários, no qual o homem pobre, por poucos soldos, à luz de candelabros e num divã de veludo, podia tomar o seu petit verre. Entretanto, nós outros o que é que temos? Também um puro absolutismo, apenas, porém, temperado… pela batalha de Avahy, pela Fosca, pela bancarrota do Estado, pela corrupção dos ministros, pela miséria do povo e as viagens do rei. Ou será que vós ao menos vós, cidadãos da Escada, tendes motivos de vos julgardes felizes? Vós que dificilmente adquiris o pão quotidiano, com o suor do vosso rosto, vós a quem é aplicável, bem como à maioria do país, o que uma vez disse Gladstone da sua Inglaterra: — Em nove casos de dez, a vida não é mais do que um combate pela existência?! E que combate! Um combate com a natureza, que não raro se vos mostra cruel; um combate com a sociedade, que se vos opõe não menos madrasta; um combate com o capital, que vos olha desconfiado, e não se digna de animar-vos; um combate com o Estado, que multiplica os impostos, aumenta as dificuldades, toma as vistas do futuro; e desta quádrupla luta é que tem de sair os meios de viver e educar os vossos filhos!… Eu não sou socialista: não encaro o número dos que cuidam poder, com um traço de pena, extinguir os males humanos, quase irremediáveis. Mas também não faço coro com a escola de Manchester; não penso que a pobreza é sempre o castigo da preguiça econômica, e que, como tal, qualquer medida de socorro ou alívio para ela, importa premiar os inertes e preguiçosos. Alto e bom som se diz que a Escada é riquíssima, que é um dos mais ricos municípios da província. Quero crer que seja assim. Porém não é estranhável que sendo o município tão abastado, ofereçam aliás os habitantes da cidade, por este lado, aspecto pouco lisonjeiro? Para as vinte mil cabeças da população do termo, esta cidade contribui com três mil, pouco mais ou menos. Sobre estas três mil almas, ou melhor, sobre estes três mil ventres, é probabilíssimo o seguinte cálculo:


90 por cento de necessitados, quase indigentes.

8 por cento dos que vivem sofrivelmente.

1 1/2 por cento dos que vivem bem.

1/2 por cento de ricos em relação.

Semelhante quadro, que pode pecar por excesso de cor de rosa, não é todavia apto para dar do nosso estado econômico outra ideia, senão a de um pauperismo medonho, quando muito, moderado pela esperança de uma sorte de loteria. Nesta triste conjuntura, o que faz o Estado, o que faz a província, o que faz a comuna, em favor da população, para diminuir-lhe os obstáculos e facilitar-lhe o trabalho? Nada mais nem menos do que sobre o costado da besta, já caída de fadiga, arrumar mais alguns quilos, afim de ajudá-la a erguer-se. O Estado e a Província sugam anualmente deste Município, sem falar de outros canais, e só do que corre pelas duas coletorias, de 25 a 30 contos de réis. Eis o que vai no refluxo. Vejamos agora o que vem no fluxo: 10 porcento dessa quantia, que se gasta com a magra instrução pública; 15 porcento, com a justiça e seus apêndices; 20 porcento, com a polícia; 1 a 2 porcento, com o artigo religião; e o resto, a saber, mais da metade, vai perder-se em outras plagas, sendo ainda para notar que as despesas com a polícia local são as únicas que trazem um resultado prático e sensível, pois que o cidadão, em muitas ocasiões, recebe no lombo a benéfica pancada do refle. Por sua vez a Municipalidade exercita, com o mesmo zelo, as suas funções exaurientes, e não se sabe, em última análise, em que se emprega a sua receita. Por toda parte, pois, e sob todos os pontos de vista, os mesmos sintomas mórbidos, as mesmas ânsias, a mesma angústia. As consciências como que perderam o centro de gravidade moral, e balançam-se inquietas em busca de um apoio. A instrução é quase nula, à medida que também é nulo o gosto de instruir-se; e temos em casa o exemplo. Acabais de ouvir que o dispêndio feito com as escolas desta cidade é muito inferior ao que se faz com a polícia: sinal evidente de atraso intelectual. Não limita-se a isso. Segundo a opinião de competentes, a proporção regular entre o número de habitantes de um lugar e o das pessoas que devem frequentar a escola, é de 12 a 15 porcento, se esse lugar quer ter o título de adiantado. Ora, dos três mil espíritos, que dissemos haver aqui dentro, 4 por cento e alguns quebrados é que se encontra realmente de frequência em cinco casas de instrução que existem, sendo somente 7 por cento o número dos matriculados !… Vê-se pois, que ainda entre nós há uma certa má suspeita contra a arte diabólica de ler e escrever, para servir-me da irônica expressão do italiano Aristides Gabelli.


Juntai esse aos demais fenômenos da nossa decadência.


O Club Popular Escadense, meus senhores, não nutre a pretensão, que seria ridícu1a, de vir levantar um dique de resistência contra a corrente de tantos males, cujo ligeiro esboço acabo de fazer; mas tem o intuito de incutir no povo desta localidade um mais vivo sentimento do seu valor, de despertar-lhe a indignação contra os opressores, e o entusiasmo pelos oprimidos. E há momentos, já disse com razão alguém, há momentos, em que o entusiasmo também tem o direito de resolver questões…


Tenho concluído.






25 de fevereiro de 2013

HISTORIA E IMAGINACION

H.R. TREVOR-ROPER

Discurso de despedida leído ante la Universidad de Oxford el 20 de mayo de 1980

H. R. Trevor-Roper (1914), Master of Peterhouse, Cambridge, no es sólo el autor de The Last Days of Hitler, Hermit of Peking, The Rise of Christian Europe, Renaissance Essayss, y el crítico, tan implacable como elegante, de la revista Encounter; sus célebres polémicas con historiadores como Arnold Toynbee, A. J. P. Taylor y E. H. Carr, verdaderas vindicaciones de la razón humana, tampoco agotan su compleja personalidad. Historiador preciso y fervoroso, es también, y quizá esencialmente, un filósofo de la historia; un filósofo sin inclinaciones metafísicas y que descree, felizmente, de las grandes explicaciones, las teorías absolutas y los determinismos históricos. La existencia de la libertad y la necesidad de la imaginación son dos de sus convicciones fundamentales.


¿Qué se dice en un discurso de despedida, además de la despedida final? Me despido ahora, no de mi materia ni, espero, de Oxford o de ustedes sino de mi cátedra. Debería, quizá, agregar un epílogo, llamémoslo así, al discurso inaugural, que pronuncié aquí hace veintitrés años. Hablé en aquella ocasión de la necesidad de la historia, aun de la historia profesional, en la educación del lego. He decidido referirme ahora a otro aspecto no profesional del estudio de la historia. Originalmente, mientras lo escribía, había titulado a mi discurso "Historia y libre albedrío": un título que quizá les parezca más apropiado para lo que voy a decir. Pero el libre albedrío, la elección de opciones, está en quienes participan en la historia. La función del historiador consiste en discernir esas opciones; y ésa es, indudablemente, la función de la imaginación. De ahí el título de mi discurso: "Historia e imaginación".

Una exposición como ésta es necesariamente algo subjetiva. Se me perdonará entonces, sobre todo en estas circunstancias, cierto espíritu autobiográfico. Nuestra visión de la historia proviene del enfrentamiento de la experiencia con la lectura y de la lectura con la experiencia, y una y otra son personales. La objetividad de la ciencia tiene su parte en el estudio de la historia, pero es una parte secundaria. El corazón de nuestra materia no está en su método sino en su móvil, no en la técnica sino en el historiador.

Hay, desde luego, gente que cree que la historia misma es una ciencia objetiva. La ven, supongo, como una técnica de estudio que se refina paulatinamente, hasta reconstruir el pasado con precisión matemática y objetividad absoluta. No creo, de todos modos, que muchos historiadores se sumen hoy a esta creencia. Es mucho lo que le debemos a los técnicos de la historia, de los filólogos del Renacimiento a los críticos-fuente del siglo XIX. Gracias a ellos nos hemos acercado a los grandes problemas de la reconstrucción histórica de una manera más exacta y útil que la de nuestros predecesores. Lo cual, sin embargo, no nos hace mejores historiadores. Incluso los historiadores más objetivos, no tardamos en comprenderlo, estaban presos, aunque no lo supieran, y no podían saberlo, en una filosofía condicionada por la experiencia subjetiva. Hasta las computadoras necesitan un programa. No existen las teorías objetivas, ni los instrumentos perfectos. Es inútil suponer que podremos construirlos en la quietud de un monasterio o en un comité (por lo demás, ¿ha salido alguno de un comité?). Las ideas y el conocimiento práctico reciben la influencia del mundo exterior, influencia que varía de generación en generación, de persona en persona, y nunca puede ser exactamente la misma.

Todos tenemos a veces la tentación de hacer la historia más científica de lo que nos parece; quisiéramos verla convertida, ya lejos de sus orígenes en la literatura, el mito y la poesía, en un sistema regular con leyes férreas. Pero al cabo debemos admitir que un método semejante, aunque pueda refinarse, jamás será perfecto. Lo mejoramos continuamente, limitando la intervención de la Fortuna y la libertad humana. Pero si alguna vez logramos eliminarlas ambas a la vez, ¡cuidado! Nos habremos quedado sin hombres. Nuestras asépticas destilaciones serían reemplazadas por un agua más fresca, una historia recién salida de la fuente.

Me pregunto ahora, no sin asombro, por qué me incliné, al estudio de la historia ─ ya un tipo particular de historia ─ a veces pienso que se debió, en parte, a una casualidad de mi nacimiento. Me crié en una zona rural de Northumberland del norte, entre los símbolos, o el sedimento, de siglos y siglos de historia: no reliquias muertas, que hubiera que desenterrar científicamente o reconstruir pacientemente, sino visibles, palpables, todavía vivas para la imaginación menos refinada. Hacia el Sur estaba la muralla de Adriano, cuya gran extensión, que sube y baja siguiendo el contorno de las colinas y los valles, impresionó tanto a Camden quando la visitó, hace cerca de cuatro siglos. Es, seguramente, el monumento más grandioso de la bretaña romana. Al norte, las colinas de Cheviot, con sus fortines y sus torres vigías que miran, por sus estrechas hendiduras y con bien justificada suspicacia, hacia los soplones escoceses; y la ciudad de Berwick, finalmente recuperada por Ricardo III (recordémoslo en su honor) y resguardada tras esas espléndidas murallas construidas para la reina Isabel por dos refugiados italianos. En el oeste, deshabitados páramos baldíos nos evitaban tener que pensar en los galeses de Cumbria, tan opuestos psicológicamente a nosotros como las antípodas. Y en el este, esa maravillosa costa de acantilados de dolerita, rocas que lleva la marea y arena, con su cordón de castillos románticos: primero, aún sobre tierras sajonas, las dos atalayas gemelas de Lindisfarne y Bamburgh, que se miran de frente como Sesos y Abidos, sobre el brazo de mar que las separa; luego, más al sur, la ruinosa fortaleza medieval de Dunstanburgh, que según Malory podría ser la Joyous Garde de Arturo, y la de Warkworth, que corresponde todavía a la descripción de Shakespeare:

this worm-eaten hold of ragged stone
(carcomida prisión de áspera roca)

En esa región ─ una isla, más bien, limitada por la colina, el monte, la muralla, el páramo y el mar ─ descansan, visibles para el ojo de la imaginación, capa tras capa de historia inglesa. Quizá no es una casualidad, pienso ahora, que esa región tan poco populosa haya sido, o llegado a ser, la casa de tantos historiadores: Trevelyans y Wallington, herederos y continuadores conscientes de Maculay, tío de uno y tío abuelo del otro, respectivamente; los dos Hodgkins, historiadores de Italia y sus invasores y de la Inglaterra anglosajona; Mandell Craighton, que escribió su historia de los Papas en la vicaría de Embleton; mi predecesor, Sir Maurice Powicke, que nació en Alnwick, y Dame Verónica Wedgwood, de Newcastle; mi vecino, Sir Steven Runciman, de Doxford.

No es, por supuesto, una razón muy intelectual para I estudiar historia. Quizá sea además demasiado provinciana. Pero en algún lado ha y que comenzar, y puede no ser tan malo comenzar con la imaginación. Es algo que siempre puede corregirse; por el contrario, si comenzáramos por corregimos corremos el riesgo de acabar en el Tedio. ¿Cuándo me corregí? Me gustaría decir que cuando leí la historia de la escuela de Oxford, pero no estoy muy seguro de que sea verdad. En el mejor de los casos, lo será sólo parcialmente.

Fue durante mi segundo año en Oxford, mientras leía el tedioso e inexpresivo poema épico griego de Nonnus, cuando decidí cambiar los clásicos por la historia. Ya he leído, me dije, toda la literatura clásica que valía la pena leer, y mucha que no valía. ¿Para qué raspar el fondo del barril? Nonnus, me pareció, estaba muy cerca del fondo. Decidí, entonces, que a partir de ese momento los clásicos serían mi descanso, y la historia, para la cual no había fondo ni fin, mi forma de ganarme la vida. Los preceptores de la Iglesia de Cristo eran entonces muy tolerantes, como sin duda siguen siéndolo. No hubo discusión, objeción ni reconvención alguna; me cambié, pues, a la Historia Moderna. Mi forma de leer, que era la de un aficionado, se volvió o empezó a volverse profesional. Muy poco tiempo después descubrí que la historia no era un arte sino una ciencia.

Había entonces en mi universidad un preceptor joven, ahora ennoblecido ex político, que estaba decidido a reformar y modernizar lo que consideraba una enseñanza de la historia algo tradicional y pasada de moda. En mi primer periodo como estudiante de historia me invitó, junto con mis condiscípulos, a sus oficinas para hablarnos de la filosofía marxista de la historia, que había abrazado con evidente devoción. Nos explicó que teóricamente era posible descubrir las leyes objetivas del cambio histórico, y que la forma de probarlas, una vez descubiertas, era ver si capacitaban a alguien para predecir la siguiente etapa del proceso histórico. La interpretación marxista, nos aseguró, había pasado la prueba: desde la época del propio Marx había predicho el curso de los acontecimientos con sorprendente exactitud. Se podía, por lo tanto, considerarla ahora científicamente válida. Como dijo otro escritor marxista, de la escuela de Balliol: una vez aceptado, "todo cae pronto por su propio peso". No fue, sin duda, lo único que dijo nuestro preceptor; fue lo que más me impresionó. El vasto teatro de la historia, antes tan indeterminado, tan informe, tan misterioso, tenía ahora, por lo visto, una hermosa regularidad mecánica: la ciencia moderna nos había proporcionado una llave maestra que, con un agradable clic, haría girar todas sus cerraduras, abriría todas sus cámaras oscuras y revelaría todos sus movimientos secretos. Era muy emocionante. Por desgracia, apenas traté de utilizar la llave me encontré con algunas dificultades. Dificultades que no radicaban en la historia del pasado, esa débil sustancia que no ofrece resistencia y es maleable a voluntad, sino en la experiencia del presente, que no es maleable.

Creo que los historiadores de todas las épocas, con excepción de los que se ocupan exclusivamente de la antigüedad, ven la historia con los acontecimientos del presente como trasfondo ─ un trasfondo decisivo. Recurren a ella para explicar los problemas de su propio tiempo, para dar a esos problemas un contexto filosófico, un continuum en el cual pueden reducirse adecuadamente y, quizá, hacerse inteligibles. Los historiadores del Renacimiento italiano quisieron dar cuenta de las revoluciones que destruyeron a su mundo en el momento de su máximo esplendor; los de la Ilustración, descubrir los mecanismos del progreso. En el siglo XIX, los historiadores ingleses buscaron en la historia los orígenes de nuestro poder institucional, mientras que los alemanes entendieron que este poder explicaba la derrota de Napoleón y la unificación de Alemania durante la monarquía prusiana: una opinión no aceptada del todo por los franceses.

¿ Y cuál era, nos preguntábamos entonces, el gran problema de los treinta? Era, por supuesto, el ascenso repentino y aparentemente inevitable de dictaduras agresivas en un mundo al que, siempre lo habíamos dicho, la democracia había puesto a salvo con la victoria de 1918. ¡Qué irreales parecen hoy aquellas viejas promesas! En Italia, Mussolini había creado una nueva forma de poder y se disponía a fundar un nuevo Imperio Romano en el Mediterráneo y en África. En Alemania, Hitler había terminado con la democracia y amenazaba con reordenar Europa por la fuerza. El imperialismo japonés conquistaba China. Estos enérgicos nuevos dictadores hicieron la paz en la política del mundo. No porque aborrecieran la guerra: ya entonces instigaban a la guerra civil en España. Una guerra civil en la que ellos serían los vencedores, y que nos pareció el preludio, el ensayo general, de una guerra todavía más grande, que, dados la indiferencia y el pacifismo de Occidente, también ellos podrían ganar.

Todos sabemos cómo obsesionó este problema a aquella generación de estudiantes, y cómo, en los arrogantes cónclaves solipsistas de ciertas universidades de Cambridge, hizo que incluso jóvenes inteligentes adoptaran las posiciones más absurdas, rindiéndose, perinde ac cadaver [tal qual um cadáver], al comunismo soviético, la única fuerza que podía garantizarle un futuro libre al mundo. Conclusiones tan viles no se esgrimieron en Oxford. En mi caso, uno de los resultados fue que encontré difícil de aceptar la autoridad de la ciencia histórica marxista.

¿Había anunciado Marx, o cualquier chismoso marxista, la aparición del fascismo? La respuesta era: No. Todo lo que podía decirse era que, al aparecer el fascismo, los profetas se habían apresurado a poner al día sus profecías, para explicar que el fascismo no era sino el último estadio del imperialismo. Así como los profetas milenaristas del siglo XVII se encontraron con ciertas objeciones inconvenientes a sus predicciones científicas al explicar que el Anticristo debe andar suelto y tener su última oportunidad de obrar libremente antes que el reino de Cristo y sus santos pueda comenzar, así los modernos pensadores marxistas dejaron de lado a Hitler ya Mussolini, fenómenos efímeros, demasiado insignificantes para ser mencionados por las prensas oficiales: burbujas que salen a la superficie sólo para estallar y disolverse de nuevo en la majestuosa corriente de la historia, que avanza por un cauce predeterminado. Esa había sido siempre, por supuesto, la doctrina oficial del partido comunista ruso. En 1933 Moscú había instruido a los comunistas alemanes para que no perdieran el tiempo enfrentándose a los nazis, que estaban destinados a fracasar, y reservaran su coraje para usarlo contra los más peligrosos, "los socialfascistas" ─ es decir: los socialdemócratas ─. Naturalmente, el análisis independiente de los objetivos intelectuales marxistas de Occidente tomó por verdadera esta misma doctrina.

En 1939 la esperada Segunda Guerra Mundial estaba cerca. Y mientras más se acercaba, más se debilitaban esos tranquilizadores razonamientos. La Rusia comunista, lejos de resultar el único oponente de la Alemania nazi, no tardó en convertirse en su aliada y asegurarse así un triunfo inmediato. Para 1940, gracias a la cooperación de Stalin, Hitler era el amo de Europa; el siguiente año un accidente ─ sí, un accidente ─ hubiera bastado para ponerlo en cualquier momento en condiciones de conquistar el mundo. El fascismo, esa burbuja sin importancia, habría hecho que la majestuosa corriente de la historia tomara un cauce completamente nuevo.

De esa época proviene la firme convicción que sostengo como historiador: la creencia en el libre albedrío histórico.
Se me dirá que he dado por supuestas algunas cuestiones. Permítanme, entonces, que sea un poco más explícito. Objetivamente, en 1940 Hitler había ganado la guerra en Occidente, y la negativa británica a aceptar la derrota era ilógica, carente de realismo y absurda. Habría bastado que Gran Bretaña lo reconociera y abandonara la batalla, para que Hitler quedara en la posición que tenía Bismarck en 1866. Derrotados sus otros enemigos, habría estado en libertad de concentrar sus fuerzas contra el último y, tras derrotado en una tercera Blitzkrieg, establecer su nuevo imperio. Difícilmente puede negarse que, en tales circunstancias, habría derrotado a Rusia. Estuvo, en realidad, muy cerca de lograrlo. "Todo lo que Lenin y nosotros hemos estado tratando de construir se ha perdido", exclamó Stalin cuando su gobierno evacuó Moscú, que parecía condenado a caer ante esa primera invasión aniquiladora. Una victoria final alemana en Occidente, si eso hubiera ocurrido, habría sido toda la diferencia.

Y qué fácil habría sido que, ese año, un mero accidente decidiera la victoria de los alemanés en Occidente. Se me ocurren cuando menos cuatro posibles accidentes, cada uno de los cuales podría haber producido ese efecto. Primero, nadie podía suponer razonablemente que, en el preciso momento en que Francia caía, habría en la Gran Bretaña un estadista capaz de unir a todos los partidos y al pueblo en la voluntad y la fe para continuar lo que fácilmente hubiera podido describirse como una batalla sin sentido. No siempre hacen las crisis aparecer al hombre adecuado: los momentos de decisión vital pasan rápidamente y, en un periodo de confusión, la capacidad de acción puede perderse sin remedio. De la misma manera, nadie hubiera podido predecir que, en ese momento histórico, tendríamos el servicio de inteligencia vital ─ el "Ultrasecreto" ─, que, directa o indirectamente, nos aseguraría la victoria aérea en toda la Gran Bretaña. En tercer lugar, no era razonable suponér o siquiera esperar que el general Franco, al que después de todo habían puesto en el poder nuestros enemigos, resistiera la tentación a la que Mussolini había cedido tan fácilmente y se ¡negara a precipitárse sobre la ayuda del aparente vencedor. Si Franco hubiera consentido en permitir un ataque a Gibraltar, ese ataque ─ como lo demostraban las experiencias de Creta y Singapur ─ probablemente habría tenido éxito. El Mediterráneo se habría cerrado entonces para la Gran Bretaña y todo un escenario potencial de guerra y victoria futuras se habría aislado. Por último: nadie hubiera podido adivinar que Mussolini tenía en mente destruir los planes de Hitler para invadir Rusia con la sorpresiva invasión de Grecia.

De no ocurrir cualquiera de estas circunstancias, creo, toda la historia de la guerra habría cambiado. ¿Habría Japón atacado cruelmente Pearl Harbor, cuando la derrotada Gran Bretaña y Rusia ofrecían una víctima indefensa? ¿Habrían intervenido los Estados Unidos en Europa, cuando aún no se retiraban las tropas de ocupación, para salvar a la Rusia comunista? ¿No habría sido más probable que el sueño de Hitler se cumpliera? ¿Que el imperio alemán se hubiera establecido y dominado Europa y parte de Asia? ¿Que, en palabras de Hitler, la era alemana del mundo hubiera comenzado?

Habría, desde luego, mucho que matizar; pero no tiene importancia para lo que quiero decir: sencillamente, que la configuración política del mundo no es lógicamente deducible, en ninguna época, a partir de la historia previa; que los accidentes humanos vuelven imposible la historia "científica", y, sobre todo (aunque no es precisamente el tema de la discusión), que es ridículo que cualquier ciencia tenga que echar mano de recursos desesperados para "salvar los fenómenos". Porque sin duda es un gesto de desesperación descartar por efímero un movimiento que, con un leve golpe de suerte, habría dominado la historia de toda una época.

Y no sólo la historia: también la historiografía. El éxito llama al éxito, y si Hitler hubiera fundado su imperio ─ ese terrible imperio cuya descripción hizo en sus Conversaciones ─ no es difícil imaginar cómo lo habrían tratado los historiadores posteriores. Los historiadores, en general, son grandes aduladores del poder. Hitler no fue más insensible ni menos inteligente que Lenin o Stalin, a los que sin embargo no les faltó nunca, puesto que triunfaron, quien los apoyara históricamente. Si Hitler hubiera ganado su última apuesta, como la ganó Bismarck, ¿figuraría del mismo modo en los libros de texto? ¿No aparecería ahora como el fundador del último y más grande Reich alemán, como el estadista genial que realizó (a cierto precio, sin duda, pero en política siempre debe pagarse alguno: la grandeza no se gana sólo con la virtud, o quizá no completamente) la ambición de un siglo, el destino histórico de una nación? ¿No lo aclamarían por haber restaurado, sobre una base más amplia y duradera, y con los mismos métodos (por ello doblemente consagrados), el imperio que Bismarck había fundado y al que luego ─ por un mal cálculo, no un error fundamental ─ había dejado languidecer? Y, en rigor, sigue siendo la misma persona que sólo porque fue derrotado por un escaso margen, ha sido desechado por varias generaciones de respetables historiadores como un mero "dictador charlatán", un insensato, un aventurero apátrida, sin otra idea que la conquista del poder personal.

Tampoco fue una reputación personal lo único transformado por ese escaso margen. En su caída, Hitler arrastró además a Bismarck. La obra de Bismarck, que parecía tan sólida a finales del siglo, se ve mucho más frágil después de 1945. Con Bismarck, además, se fue a pique la característica filosofía de la historia elaborada en la Alemania del siglo XIX, a la que sus obras habían consolidado y que fue hasta nuestros días la ortodoxia en las escuelas alemanas.

¡Qué liberadora filosofía fue ésa cuando se expresó por primera vez, recién nacida de la inspiración de Herder y Goethe, cuando las sombras de la ilustración se desvanecían ya en la primera aurora dorada del Romanticismo: ¡una filosofía que le devolvió la autonomía al pasado y nos dio nuestro concepto cabal de la cultura! A lo largo de un siglo, esta filosofía dominó toda la reflexión sobre la historia. Fuera de Alemania ─ en Suiza, en Rumania ─ sirvió de inspiración a algunos, de los más grandes historiadores. Pero en Alemania, donde el poder del Estado se arrogó los derechos de la cultura y donde más tarde una raza se hizo cargo de los derechos ya usurpados por el Estado, fue transformándose gradualmente; y aún en 1939, puesto que se mantenía fiel a su antiguo fundamento, seguía avanzando, y no sólo debido a vulgares propagandistas, sino a los más grandes y más refinados historiadores alemanes, que habrían de celebrar en la guerra victoriosa de Hitler la consumación de una misión histórica y de su propia filosofía de la historia. Si Hitler hubiera ganado la guerra, ¿podríamos dudar de que esa filosofía, que es hoy letra muerta, habría cobrado nuevas fuerzas, se habría convertido en la doctrina del continente?

No dudaría, entonces, en decir que entre 1940 y 1941 un simple accidente, que muy fácilmente pudiera haber ocurrido, no sólo habría revertido el final de la guerra y transformado, en consecuencia, la faz del mundo, sino que habría impuesto además una nueva síntesis de ideas y de poder, creando un nuevo contexto lo mismo para la política que para el pensamiento. Dicha síntesis, una vez creada, podría haber durado generaciones enteras, como lo ha hecho la síntesis comunista que, a su vez, y por el mismo accidente, habría sufrido el destino del nazismo: habría sido desmantelada totalmente, para no ser jamás reconstruida en la misma forma. Esta reflexión, muy simple, no puede sino afectar nuestras ideas acerca del proceso histórico.

Cuando Pascal escribió que si la nariz de Cleopatra hubiera sido un poco más larga la faz de la tierra habría cambiado, estaba cayendo en una retórica sin fundamento, que cualquier historiador riguroso debería deplorar. Con todo, no puedo sino pensar que si el 23 de octubre de 1940, en Hendaya, el general Franco hubiera sustituido efectivamente un monosílabo por otro ─ si en lugar de no hubiera dicho si ─ nuestro mundo sería del todo diferente: el presente, el pasado y el futuro habrían cambiado por igual. Pero una vez que hubiera cambiado, nadie se habría demorado en ese pequeño episodio. La victoria de los alemanes se habría atribuido, así, no a dichas causas sin importancia, sino a la necesidad histórica.

Después de 1945, por supuesto, las viejas doctrinas se restablecieron. Una vez que Hitler hubo perdido la guerra, se dijo que nunca hubiera podido ganarla. Había cometido la insensatez de desafiar a las grandes potencias del futuro. Había intentado detener el progreso de la humanidad y desviar el curso de la historia mundial. Era, evidentemente, un lunático condenado al fracaso. La historia mundial, que es lo que más tarde sabemos de lo ocurrido, tiene siempre, por definición, la última palabra.

Esta doctrina restaurada fue expresada, en una forma artificiosa y lapidaria, por un distinguido historiador: el señor E.H. Carr, en una serie de conferencias pronunciadas en Cambridge en 1961 y publicadas, ese mismo año, con el título ¿Qué es la historia? Según Carr, la historia es el registro de lo que la gente hizo, no de lo que dejó de hacer. Se refirió con cierto desdén a quienes se interesan por los callejones sin salida y los "podría haber sido" de la historia. Que esto no es una simple boutade, lo muestra la misma obra de Carr, en la que la doctrina del progreso, y su identificación con la causa de veras triunfante, están elegantemente expuestas. Vemos a Napoleón arrastrar "los milenarios despojos del feudalismo", y a los infortunadas rivales de Lenin destinados ignominiosamente al basurero de la historia: "El único camino digno para el historiador", dice provocativamente Carr, "es escribir como si lo que pasó hubiera estado de hecho obligado a pasar, y como si su deber consistiera simplemente en explicar qué pasó y por qué". Quienes se entretienen en "juegos de salón" con los "podría haber sido" de la historia no pueden, piensa Carr, ser historiadores serios o siquiera hombres honestos. Pueden pensar que están interesados en la verdad, pero en realidad están buscando compensar desilusiones o fracasos personales. Ellos mismos están ya, en verdad, en el basurero de la historia, y el basurero nos llama al basurero con voz débil y lastimosa. Así pues, no perdamos el tiempo: no forcemos nuestros oídos para captar esas lánguidas voces desfallecientes, que se ahogan en lágrimas y entre la basura. Pero Carr es aún más lacónico: "librémonos de una vez por todas de estos arenques ahumados".

Ninguna frase, creo, fue más un agravio para mis propias creencias que la frase sobre los "pudo haber sido" de la historia. Estoy de acuerdo, por supuesto, en que algunas especulaciones históricas son inútiles y en que algunas pueden reflejar una nostalgia personal. Pero en cualquier momento dado de la historia hay alternativas reales, y descontarlas como irreales porque no se cumplieron ─ en palabras de Carr: porque fueron "clausuradas por el fait accompli" ─ es sacar a la realidad de la situación. ¿Cómo podemos "explicar lo que ocurrió, y el por qué", si sólo miramos lo que ocurrió y no consideramos nunca las alternativas, la configuración de todas las fuerzas que intervinieron para crear el acontecimiento?

Tomemos el caso de las revoluciones. Todos conocemos las revoluciones que ha habido. ¿Cómo hemos de "explicarlas", sin embargo, si no podemos compararlas con las que no ha habido ─ es decir, con esos momentos de la historia en que hubo circunstancias y fuerzas similares y, aún así, no estalló la revolución? Sostener que "lo que ocurrió tenía que ocurrir" es dar por supuesta la razón por la cual ocurrió y, de golpe, privar a la historia tanto de sus lecciones como de su vida.

En 1646 el Parlamento inglés había ganado la guerra contra Carlos I. El poeta republicano Tom May, al que el Parlamento acababa de nombrar su historiador oficial, expresó una opinión que muchos historiadores han repetido después: la revolución había estado siempre obligada a ocurrir. Había estado gestándose, escribió, desde los últimos años de la reina Isabel y era claramente perceptible, en el fondo, bajo la paz aparente de la época de Carlos I. Los elegantes ideólogos puritanos, que ya entonces habían entrado en el juego, confirmaron esta opinión. Invocando las matemáticas místicas de la ciudad celestial, declararon que las contiendas políticas de Inglaterra habían sido anunciadas veladamente por los profetas de Israel, y que el resultado de la batalla de Marston Moor ─ una maldita cosa tremendamente reñida, en opinión de los participantes ─ podía leerse en los misterios del Libro de Daniel y en el Apocalipsis. Pero un historiador más grande que Tom May pensaba de manera diferente. "No soy", escribió el monárquico Clarendon, "tan perspicaz como los que han visto maquinarse esta rebelión desde la muerte de la reina Isabel, y quizá incluso desde antes", e insistió en que en muchos momentos, sobre todo en 1641, los políticos podrían haber evitado "esta rebelión innecesaria", si hubieran actuado con prudencia. Quizá estaba en lo correcto. ¿Tenemos derecho a negar esa posibilidad, cuando han pasado tres siglos? Y entonces, quizá, el tiempo habría gastado esas fantasías milenaristas, que permanecerían enterradas en la obsoleta subcultura de los fundamentalistas puritanos que miraron hacia atrás hasta que, con el paso de una generación, cayeron sin ser notadas, como tantas otras disparatadas fantasías, en el siempre abierto basurero de la historia.

¿Habría podido evitarse la revolución en Inglaterra en aquellos años, como se evitó después de 1840 ─ cuando no ocurrió? ¿Estaban Carlos I y Jaime II destinados a fracasar? ¿Habría podido un rey más juicioso que ellos conservar o restaurar la monarquía autoritaria en Inglaterra, como se hizo en tantos otros países de Europa? Sus contemporáneos pensaron que podían hacerlo; ¿por qué habríamos de negarlo nosotros? Entre 1630 y 1640 Inglaterra llegó a acostumbrarse a un régimen conciliar. Algo que sin duda no le gustó a los viejos parlamentarios: tampoco le había gustado a los Estados Germánicos el nuevo gobierno centralizado en Bavaria y Austria. Pero una nueva generación aceptó el cambio. Según Brunton y Pennington, en 1640 los oponentes de Carlos I eran, en promedio, once años más viejos que los miembros monárquicos del Parlamento. Pocos años más tarde, la balanza se habría inclinado definitivamente. Con lo cual, ya que el poder es un imán como ningún otro, ¿no podrían haberse adaptado a él y a su nueva confliguración los líderes de la sociedad?

Algo parecido ocurrió poco después de 1680. Para entonces, la monarquía autoritaria, sólidamente basada en la alianza entre el campo, la ciudad y la iglesia, parecía casi un hecho. Si Jaime II hubiera puesto, como hizo su hermano, a la política por encima de la religión ─ si no hubiera roto caprichosamente el pacto entre la Iglesia y los hacendados ─ probablemente la "reacción de los Estuardo" no habría cobrado importancia, ni habría echado raíces. ¿No habrían vuelto entonces los ilustres Whig de Inglaterra, como los ilustres hugonotes de Francia, a adorar el sol naciente? En lugar de una "ascendencia Whig" hubiéramos tenido un "despotismo ilustrado", y los historiadores explicarían que también eso era inevitable.

Si queremos estudiar la historia como una materia viva y no sólo como un colorido desfile, una crónica de la antigüedad o un dogmático sumario, no debemos perdemos de ningún modo en especulaciones estériles, pero debemos darle su lugar a la imaginación. La historia no es únicamente lo que ocurrió: es lo que ocurrió en el contexto de lo que pudo haber ocurrido. Hay que tener en cuenta, entonces, como un elemento indispensable, las alternativas, los "podría haber sido". Puede que ahora estén en el basurero; ahí mismo han ido a parar, sin embargo, quienes los desecharon. Por lo demás, ¿quién puede decir con seguridad cuáles se quedarán fuera del juego? Después de lavarse las manos, Pilatos creyó seguramente que cierto episodio había sido "cerrado por el fait accompli"; pasarían tres siglos antes de que los romanos cultos reconocieran que había sido él, y no Jesús, quien había perdido la partida.

Es un error confundir los hechos con las causas y suponer que el historiador puede explicado todo limitando su interés a "lo que ocurrió". ¿ Por qué tendríamos que suponer que todas las respuestas están contenidas en los hechos? Hay hechos que no son causas, y causas que no son hechos. Las ideas y los mitos son fuerzas poderosas de la historia. También son meros estados de ánimo: los hechos objetivos pueden ser los mismos en dos coyunturas históricas, pero diferente la atmósfera moral. Hay, entonces, esas "ocasiones perdidas": coyunturas históricas en las que las grandes aspiraciones parecen a punto de realizarse, sólo para ser sorprendidas ─ quizá no inevitablemente, quizá por un accidente o una tontería de los hombres ─ por una realidad muy distinta. Pienso en ese verano de 1641 en Inglaterra, cuando parecía haberse llegado a un acuerdo, a la base de una nueva reforma pacífica: cuando John Milton y Stephen Marshall saludaron "el verdadero jubileo y resurrección del Estado"; pienso, también, en el comienzo de la Revolución Francesa, cuando Wordsworth pensó que estar vivo era una dicha; y en ese momento de la historia de los Países Bajos, después de la pacificación de Ghent, que tan brillantemente ha reconstruido Frances Yates. Todas esas ocasiones de esperanza estaban perdidas: pero ¿estaban necesariamente perdidas? ¿No hay otras semejantes que se hayan ganado? Ignorar tales ocasiones perdidas, borrarlas impacientemente del libro de la historia como si simplemente no hubieran ocurrido, es no sólo un error, sino un error craso. Un error porque, aun cuando se frustraron, explican los motivos de los personajes de la historia y encierran una lección histórica; un error craso, además, porque hay en ellos una realidad más profunda: habría que ser insensibles y filisteos para ignorarla. Aunque políticamente estériles, han contribuido, más que cualquier simple hecho, al arte y a la literatura, que son el depósito siempre valioso de la historia del pasado.

Sólo si nos colocamos ante las opciones del pasado como ante las del presente; sólo si vivimos por un momento como vivía el hombre de la época, en su contexto todavía cambiante y entre sus problemas todavía no resueltos; si vemos que se nos vienen encima esos problemas, así como los recordamos cuando han pasado, sólo entonces podremos sacar lecciones provechosas de la historia. Eso quería decir la famosa frase de Ranke ─ el joven Ranke, aún no corrompido por el determinismo filosófico de Berlin ─, que ha sido tantas veces citada, y casi siempre mal empleada: Wie es eigentlich gewesen [como era realmente].

Es necesario un esfuerzo de la imaginación para restituir al pasado sus incertidumbres perdidas, para volver a abrir, así sea por un instante, las puertas que el fait accompli había cerrado. Pero es sin duda un esfuerzo necesario si queremos ver la historia como algo real y no simplemente como un útil esquema. Pues ¡cuántas veces se ha burlado la historia de sus "científicos" profetas! ¡Cuántas veces su curso verdadero se ha derivado no de los acontecimientos patentes sino de fuentes ocultas, inadvertidas! Para quienes sostienen que el curso de la historia puede predecirse, y no sólo en la forma más general y condicionada, me gustaría plantear una pregunta muy sencilla. Que se imaginen en algún momento de su vida, no muy lejano, del que aún conserven memoria, y digan honestamente si entonces hubieran podido predecir lo que de hecho sucedió: los acontecimientos de su propia vida, su propia experiencia. Tomemos como punto de referencia el año de 1945. En 1945 cualquiera podría haber predicho la rivalidad de las dos superpotencias: los Estados Unidos y Rusia. La habían previsto, después de todo, Tocqueville y otros cien años antes. Pero ¿quién hubiera predicho que Alemania seguiría dividida treintaicinco años después de su derrota?, ¿que Berlín seguiría siendo una isla dividida, en un mar comunista?, ¿que habría una base rusa frente a las costas de Florida?, ¿y que países enteros de África serían conquistados por el ejército de esa isla del Caribe?

O, para ir un poco más lejos, tomemos el año de 1910. El 1910 cualquiera podría haber predicho una guerra mundial provocada por el poder militar e industrial de los alemanes Pero ¿podría alguien haber previsto las consecuencias de semejante guerra: el hundimiento de tres grandes imperios la revolución bolchevique, el ascenso del fascismo? Retrospectivamente, desde luego, podemos leer los signos, seleccionar las pruebas y, con plena satisfacción, predecir lo que visiblemente había ocurrido. Pero ¿quien previó en su momento tales cosas, quién hubiera creído en ellas si las hubieran predicho? Hace un siglo, los geopolíticos podrían haber previsto la prolongada colonización que harían Rusia y los Estados unidos de los territorios deshabitados de Oriente y Occidente; pero ¿quién hubiera podido prever la más sorprendente colonización del Mediterráneo oriental: la creación del Estado de Israel? Puede gustarnos o no, podemos admirarla como la realización de un sueño romántico, una victoria de la fuerza de voluntad del hombre sobre las realidades obstinadas creadas para limitarla, o podemos deplorarla como la última cruzada de Occidente, la más reciente aventura del imperialismo occidental, en busca no de comercio sino de colonias, Lebenstraum [sonho]. Sin duda es en realidad ambas cosas. Pero no podemos negar que es una hazaña histórica extraordinaria. Qué lejos estaban los estadistas británicos que escucharon a sus primeros abogados de preveer las actuales consecuencias: la sustitución de un "hogar nacional" judío por un Estado nacional; la consecuente transformación del Medio Oriente; el incendio de todo el mundo árabe; grandes potencias, incluso superpotencias, obligadas a pagar rescate por los fundamenta listas árabes en Libia y los revoltosos derviches en Irán. Pero, por otra parte, ¿quién hubiera podido prever entonces el terrible holocausto europeo que hizo posible esto?

Hace veinte años yo mismo estuve en Irán, y tuve oportunidad de visitar la ciudad sagrada de Qum, el lugar donde nació un mullah chiíta entonces desconocido, el ayatola Jomeini. Un nuevo pozo petrolero se había abierto recientemente cerca de Qum. Fui recibido ahí por el ingeniero encargado, un persa amabilísimo, educado en Occidente, que se alegraba de ese nuevo triunfo del progreso tecnológico. Con un entusiasmo creciente, enumeró los miles de barriles diarios que estaba produciendo entonces su desbordante pozo, y los cientos de miles que pronto produciría. Y, como el joven Macaulay, se vanagloriaba de la nueva sociedad moderna que ya veía crecer alrededor de esto: una torre saludaría a la otra en las colinas persas, y el desierto florecería como los pozos petroleros. En veinte años, dijo con orgullo, habremos creado un nuevo Irán, un nuevo iraní, y todos esos mullahs ─ y señaló despectivamente hacia la ciudad sagrada ─ habrán desaparecido: no tendrán nada que hacer aquí y ni siquiera serán imaginables en nuestro maravilloso nuevo mundo. Hoy, los veinte años han pasado. Me pregunto si este amable tecnólogo sigue con vida en Irán. De ser así, debe de estar muy sorprendido.

Pero no tiene de qué avergonzarse. La historia está llena de esas sorpresas, y a nadie sorprende más que a quienes creen haber descubierto su secreto: quienes creen saber, no por intuición sino científicamente, la dirección en que se mueve. Los calvinistas del siglo XVI eran esa clase de hombres. Creían que sabían. Apartándose de las dos ciencias más exactas de su época, las sagradas escrituras y las matemáticas, habían construido un gran sistema de la historia, cuyas operaciones futuras podían calcular. Al iniciarse el siglo XVII, esperaron confiadamente la realización de sus sueños ─ y, así lo imaginaban, de la voluntad de Dios. ¡No podían haber quedado más decepcionados! En unos cuantos años, su gran síntesis quedó en ruinas: restos de una máquina voladora compleja pero mal fabricada, sus partes aún útiles ─ relojes, compases y uno que otro instrumento ─, robadas, se destinaron a usos doméstico; su poderosa máquina teológica y sus gloriosas alas filosóficas, quemadas y en pedazos, se oxidan en alguna barranca de Bohemia. Tal es, generalmente, el destino de los grandes sistemas históricos. La Revolución Francesa tomó por sorpresa a los enciclopedistas del siglo XVIII. Los whigs del siglo XIX fueron sorprendidos por el ascenso del socialismo; los marxistas del siglo XX, por el del fascismo. La revolución islámica de nuestros días es, como el desarrollo del Estado de Israel, un fenómeno que podría haberse predicho, y sin duda los libros de texto no tardarán en hacerla aparecer como la cosa más obvia del mundo, Pero nunca lo predijeron esos historiadores científicos que tan confiadamente esperaron el futuro: habían imaginado insuficientemente el pasado, ¿Quiénes han vislumbrado entonces con mayor claridad el futuro, entre los historiadores? Irónicamente, aquellos que menos han creído en las profecías de la razón: aquellos que, al contemplar la historia del pasado, han reconocido las limitaciones del libre albedrío humano pero poniendo, al mismo tiempo, el mayor cuidado en respetar sus derechos; aquellos, también, que para dar su lugar a la actividad de la imaginación han preferido antes plantear que responder preguntas, antes sorprenderse que "explicar por qué". Eso que hemos llamado "la maravillosa sabiduría de Tucídides" seguirá leyéndose, aunque no ofrezca ningún sistema ni responda ninguna pregunta, mientras las "historias universales" de los grandes filósofos caen una tras otra en el olvido. Gibbon es el único que sobrevive entre los grandes historiadores "filosóficos", y no porque posea una sólida filosofía (que sin duda posee) sino porque su filosofía nunca forzó el paso. No negó nunca el poder del libre albedrío. Y, sobre todo, su imaginación se mantuvo siempre despierta.

Siempre que sus ojos se fijaban en un acontecimiento o una situación histórica, Gibbon dejaba a su pensamiento vagar por lejanos horizontes, imaginando analogías, contrastes, posibilidades, para concebir o corregir una generalización. ¿Se habrían salvado más íntegramente las obras de los clásicos de la antigüedad si en la Edad Media, en lugar de la técnica para trabajar la seda, se hubieran llevado de China a Europa las técnicas de impresión? ¿Deberíamos "temblar ante la idea" de que se hubieran perdido más enteramente si Bizancio hubiera caído antes en poder de los turcos? ¡Qué cerca hubiera estado Roma en el siglo VII, sin el valor de un Papa extraordinario, de caer en el olvido en que se han hundido Tebas, Babilonia y Cartago! ¡Con qué injusticia se ha acusado a los godos ─ "esos bárbaros inocentes" ─ de la ruina de la antigüedad! "¡Qué gran momento para los anales de la ciencia", cuando Alejandro rescató los registros astronómicos de Babilonia y, a solicitud de Aristóteles, los envió a los astrónomos de Grecia! ¡Qué justa, la comparación entre los bárbaros lombardos de la Edad Oscurantista y los abogados y clérigos del siglo XVII, por el tratamiento que daban a las brujas! ¡Qué fatales han sido los efectos a largo plazo de la conquista de Rusia por los mongoles, "la marca profunda y acaso indeleble que la servidumbre de dos siglos ha impreso en el carácter de los rusos"! Y cómo resistir la tentación de citar aquí esa visión de lo que habría sido el futuro si la batalla de Poitiers del siglo XVIII se hubiera resuelto de modo diferente: el avance del Islam hasta los límites de Polonia y las tierras altas de Escocia. "El Rhin no es más infranqueable que el Nilo y el Eufrates, y la flota árabe podría haber navegado sin librar combate hasta la desembocadura del Támesis. Quizá la interpretación del Corán se enseñaría ahora en las escuelas de Oxford, y la santidad y la verdad de las revelaciones de Mahoma se demostrarían desde sus púlpitos a un pueblo circuncidado". Quizá todavía es posible.

A fin de cuentas, es la imaginación del historiador, no sus estudios o su método (por necesarios que sean), lo que le hará percibir las fuerzas ocultas del cambio. Es eso, supongo, lo que Theodore Momsem quería decir cuando habló del poder adivinatorio del historiador, y eso lo que quería decir Jakob Burckhardt cuando habló de Ahnung: la contemplación, la capacidad de "ver el presente que descansa en el pasado". Burckhardt negaba que la historia fuera científica. No reconocía ninguna ordenada Weltgeschichte , ningún "plan del mundo", Se negó a hacer profecías como las que hacían sus contemporáneos alemanes. "Nos encantaría saber qué olas nos llevarán por el océano" del futuro inmediato, escribió en 1870, "pero nosotros mismos somos esas olas". Con todo, gracias a que combinaba maravillosamente la imaginación y la comprensión histórica, previó él solo lo que ni Ranke ni Marx ni ningún otro contemporáneo suyo pudo prever: la aparición, en medio de la decadente sociedad de la Europa liberal, del nuevo despotismo industrial del siglo XX y, especialmente, de la Alemania del siglo XX. Hace unos años publiqué un artículo en el que me referí, de pasada, a este contraste. Fui puntualmente criticado por un historiador marxista, quien replicó que Burckhardt había tenido simplemente un golpe de suerte: había dado en el blanco sin que ninguna ciencia lo respaldara y no podía compararse con el "científico" Marx.

Cualquiera que lea los escritos de Burckhardt, y pueda extraer la profunda filosofía que encierran y que sostiene esa convicción profundamente sentida, podrá decir si esa crítica es justa. En suma, no lamento haber hecho que la mayor parte de ustedes leyeran algo de Gibbon y que algunos probaran un poco de Burckhardt.

Tal es, creo, la imaginación de la que las obras y los estudios de historia habrán de requerir siempre. Ejercerla quizá no esté en la medida de nuestras posibilidades; pero aceptar su importancia y reconocerla cuando entra en juego es, creo, esencial si queremos mantener los estudios históricos entre las preocupaciones del hombre, si queremos mantenerlos con vida.

Dichas estas palabras, debo preparar mi partida, con permanente agradecimiento a esta Universidad, a la que debo un periodo bastante largo de mi educación, y a la Facultad que me ha tolerado y mantenido, y contento de saber que la cátedra que hoy dejo no ha sido congelada ni se ha declarado innecesaria, sino que va a ser ocupada por un historiador muy distinguido, que casualmente es además compañero de trabajo, un antiguo alumno y un viejo amigo. Me da gusto además observar, en el momento de mi partida, un caso de predicción histórica casi burckhardtiana. Hace veintitrés años tuve la mala fortuna de molestar, con un obiter dictum histórico, a ese gran defensor de la iglesia católica, el ya fallecido Evelyn Waugh. En el transcurso del debate público que siguió y que llegó a veces a ser algo áspero, ese vigoroso escritor, creyendo que había ganado alguna ventaja sobre mí, lanzó una exclamación de triunfo. "Un curso de honor", escribió, "se ha abierto para Trevor-Roper. Debe cambiar de nombre y buscar una forma de ganarse la vida en Cambridge". Este pequeño episodio se borró de mi memoria mucho tiempo, hasta que hace unas semanas fue evocado, afuera de la librería de Blackwell, por el profesor Momigliano, cuidadoso cronista de historia antigua. Lamento que Waugh no esté vivo para saborear esta pequeña victoria, que gustoso le concedería a quien tanto hizo por nuestra" rica y delicada lengua", el vehículo necesario y el único medio que tenemos para conservar, lo mismo la historia que la imaginación.

[Publicado em Vuelta 114, Maio 1986.]