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21 de maio de 2014

Você é aquilo que lê

Carlos U Pozzobon

Desabafos sobre filosofalhas e literatolices dos tempos em que vivemos

Carlos U Pozzobon

Que todos conhecem a desgraceira de nossa vida política, não é preciso comentar. O que precisamos entender é a relação de uma sociedade de corte estatal com a cultura, em que o mérito sempre esteve seriamente comprometido com as cotas destinadas à proteção dos tolos, dos despojados de energia intelectual, dos fraquinhos, dos frívolos inseridos no processo de produção cultural ― marca indelével de um país contaminado pela corrupção intelectual, que consiste no espírito de rebanho em aderir à onda produzida pelas calamidades elevadas ao pedestal da glória ― causa maior e mais aviltante do que a corrupção moral em que chafurdamos.

Quando uma Academia de Letras homenageia Ronaldinho Gaúcho com uma medalha de mérito, quando universidades distribuem títulos de doutor honoris causa a um apedeuta, podemos entender por que tanta gente expressa suas preferências por autores com obras vazias de conteúdo estético e artístico.

São essas cotas de literatolice que transformam autores sem conteúdo em celebridades nacionais e internacionais, confundindo o leitor eventual que ainda não tem um gosto consolidado, ou que não dispõe das ferramentas de análise do crítico. Supostamente deve ser a principal razão para que a leitura seja afinal considerada um sofrimento pela maioria dos brasileiros, e por sua inclinação à brevidade do jornal e da revista em lugar do livro.
Escravo do “ouvir dizer”, da fama turbinada pelas editoras “do mercado” (espécie de “seguimento da deseducação geral do país”), e de colunas de revistas, o brasileiro lê com sofreguidão o que lhe dizem que é bom, e procura fugir como o diabo da cruz do próximo bestseller, até que, forçado pela necessidade de inserção social, volta a porejar o sacrifício da leitura, o que o impede de evoluir intelectualmente para apurar seu gosto para os refinamentos mais sutis das formas de expressão, para o deleite eriçante da beleza da linguagem, ou para a compreensão do sublime ou do paradoxal, do poético ou do assombro que só o escritor erudito e talentoso pode proporcionar.

Dependente do padrão alienígena, em uma sociedade cujos valores mais cultivados são a imitação do estrangeiro, cativo das opiniões de membros de instituições avacalhadas difundidas incansavelmente, o leitor comum nunca desenvolverá a sensibilidade para contestar aquilo que a maioria consagra como grande autor. E esta deformidade atravessa as décadas com a mesma constância e uniformidade de nossa imutável realidade social, acorrentada nas tradições desesperadoramente retrógradas.

Quem lê a avassaladora crítica de Sylvio Romero ao espírito limitado de José Veríssimo, em Zeverissimações Ineptas da Crítica – Repulsas e Desabafos, percebe claramente a diferença abissal entre o erudito e o convencional, e entende muito bem por que somos uma sociedade onde a mediocridade tem um lugar garantido no triunfo das corriolas paroquianas, da crítica sem profundidade, do aceito sem controvérsias, para vislumbrar a amorfia que causa a repulsa ao próprio gênio da brasilidade que as instituições têm por missão instigar, pois nem sequer sabem como fazê-lo. Nossa sociedade está tão aviltada intelectualmente que perdeu os sensores que emitem os sinais de alerta para a chegada do mais dotado, para a presença catalítica dos melhores. Vive o entorpecimento de seu próprio contexto de servidão institucional.


Primeiro problema:

O vírus do paternalismo que informa a opinião alheia é o mesmo que cria os gostos literários no Brasil, e estes gostos e tecnicalidades literárias exaustivamente explorados nos EUA, com sua sequência de fórmulas buriladas no jornalismo, e de truques de marketing para a venda massiva pelas casas editoriais, são hoje parte de um universo que idealizamos, mas que não tem um pingo de nossa realidade. Como gostar de nossa realidade se queremos uma literatura engajada na modernidade e nossos autores só fornecem novelas de cangaceiros, bandidos e marginais? Cansados da imutabilidade de nossa realidade social, da resistência intransponível à inserção na modernidade, buscamos no personagem do escritor alienígena as pontes de identidade com nosso mundo subjetivo, para escapar da massacrante realidade de nossa jecolândia ridícula.

Grande engano: os leitores do primeiro mundo mergulham nos escritores do século XIX com uma voracidade insaciável, provando que não é o personagem moderno que atrai, mas a captura da imaginação do leitor pelo mecanismo de marketing das casas editoriais. Portanto, o aspecto histórico é menos importante que a narrativa em si, e não justifica a escolha do padrão. Ninguém usa o padrão de seu próprio tempo como bitola para o julgamento de uma obra literária.


Segundo problema:

Não resta dúvida que a acumulação em proporções legionárias de autores no repertório das letras nacionais deixa o leitor desorientado sobre a quem seguir, especialmente numa fase de rompimento institucional, em que a arrogância passa despercebida no quadro geral da burrice imperante.

Alguém que tenha lido 1000 livros, acha-se no devido direito de recomendar seus leitores para a importância do que sabe, do que lhe parece o melhor de nossas letras e pensamento, e chamar a frivolidade existente de imbecilidade geral.

Mas se no quadro geral da cultura encontramos um conjunto de 4 a 5 mil livros igualmente importantes, e muito além da disponibilidade de leitura do comum dos mortais (pois estou falando apenas da cultura nacional), como afirmar que se conhece “tudo” de mais importante, se todo o dia encontramos autores e livros esquecidos ou desconhecidos de altíssimo conteúdo estético e moral?

Como resolver esta questão volumétrica? A saída parece ser a constante renovação de nossas listas. É por isso que um autor consagrado em uma década, torna-se esquecido logo depois. Sem o saber, ele teve que dar lugar a outro na lista do leitor por simples esgotamento humano. E isto já vem se sucedendo desde Gutemberg.


Terceiro problema:

Amadeu Amaral publicou um livro de crítica literária em 1924, chamado Elogio da Mediocridade, em que enfatizava a necessidade dos menores talentos para que surja um grande talento do meio das sombras: “toda literatura pressupõe uma multidão de medíocres, e não só de medíocres, senão também de inferiores, de rudimentares, de falhados e de decadentes. Tanto mais pujante e luminosa ela é, tanto mais grossa a multidão rasteira. Esse mato baixo sustenta a indispensável camada de húmus, resguarda e entretém a vida incipiente das árvores destinadas à máxima expansão. Foi esse mato que permitiu, na Inglaterra, o crescimento fabuloso de Shakespeare, a cuja volta trabalhava e produzia uma plêiade de dramaturgos fortes e uma turbamulta obscura de escribas irrequietos”.

A ideia de que os menores são absolutamente necessários para o aparecimento e robustez dos maiores foi algo inusitado até então. A questão adquire relevo quando os menores são tomados como maiores, quando as inversões são a própria natureza das instituições. Neste caso, o dano ao espírito pode ser irreversível na formação do gosto, ou ao menos retardar o descobrimento do gênio por muitos anos.

Se o próprio ato de ler é entregar o espírito ao autor, e esta entrega não é feita sem cobrança, só se prepara para a cobrança aquele que atravessou estilos, colecionou trechos, comparou autores e, através da sensibilidade adquirida, soube amadurecer seu entendimento e se tornar um emissor de opinião independente, isto é, um verdadeiro crítico. Com isso, toda a vez que entramos em uma biblioteca e percorremos suas prateleiras, ficamos com a nítida impressão de que um gesto ao acaso pode nos revelar um gênio adormecido no meio da multidão.


Quarto problema:

O crítico profissional tem que lidar com valores que não interessam ao leitor comum. Para Sylvio Romero, a análise da obra literária deveria tratar de sua “personalidade, força, movimento, precisão, elegância, colorido”. O crítico deveria conhecer a evolução dos gêneros, os fatores mesológicos (ecológicos), os fatores étnicos, históricos e psicológicos. Ao leitor comum, estes fatos pouco importam. Mas ele insiste que a crítica deve ter um olho na sociologia e outro na filosofia. Para o leitor doméstico classificar um livro como bom, este deve ser excelente em mais de um dos seguintes tópicos:

  1. O mainstream da obra. Em uma novela ou romance, o argumento principal da narrativa pode ser interessante, por novidadoso ou convencional, por já ter sido abordado por inúmeros autores. Neste caso, o escritor deve ser comparado com os que melhor se conhece em obra semelhante. Mas um livro não pode receber o qualificativo de bom só por isso. Um livro deve ser lembrado pela sua moldura. Por exemplo, em A Montanha Mágica, de Thomas Man, as discussões no sanatório dos Alpes Suíços sobre o espírito da época e a decomposição dos valores liberais que precede a Alemanha Nazista. O projeto de um livro pode ser um debate em torno de algumas ideias, a saga de uma família, um crime hediondo, etc. É o que dele vai ser lembrado em primeira instância.
  2. O tom geral que introduz um livro, um assunto, um capítulo, uma parte. A boa leitura tem esse clima de enlevo e sedução que aumenta à medida que vamos avançando. Ezra Pound disse que um “clássico é clássico não porque esteja conforme certas regras estruturais ou se ajuste a certas definições (das quais o autor, provavelmente jamais teve conhecimento). Ele é clássico devido a certa juventude eterna e irreprimível”. E adverte para as propriedades visuais e sonoras do texto. Poesia ou prosa evocam sons e imagens que podem ser entendidos com a seguinte terminologia: a fanopéia, isto é, a imagem produzida pelas palavras; a melopéia, os sons da linguagem, a sua musicalidade; e a logopéia, a combinação da imagem com o som.
  3. A qualidade da linguagem. A maior praga na vida do escritor é a linguagem jornalística, por se tratar da prosa convencional, do vocabulário restrito ao gosto do povo semiletrado, da forma corriqueira de se escrever. A pobreza com que as pessoas são diariamente bombardeadas pelas mídias tem reflexo na preferência do leitor por uma literatura despojada, em que por incapacidade intelectual o autor se esconde na falsa trincheira do classicismo, como se o clássico fosse o modo de escrever simples e direto. Examinando Dante, Shakespeare, Cervantes e Sterne ficamos bastante chocados com a inexistência do “simples e direto”. Pela linguagem se conhece o autor. Sem o exercício da linguagem, não se conheceria Guimarães Rosa, James Joyce e Falkner. Barrocos como Euclides da Cunha, Alberto Rangel e Lezama Lima não seriam publicados. Mas a linguagem, evidentemente, não é tudo. A narrativa precisa de um fio condutor, para não ser apenas experimentalismo sem trama, alegorias desossadas, como, aliás, esteve na moda no final do século passado.
  4. A qualidade das metáforas. Este é o terreno onde mais transparece a diferença entre um escritor de verdade e um convencional, destituído de conteúdo e de sensibilidade poética e humana. É um dos elementos que vai ficar na nossa memória como qualificação do escritor, mesmo depois de muitos anos. Eu nunca mais esqueci a metáfora de Lezama Lima para a modorra de uma tarde de domingo: “arena demasiada espesa en la clepsidra”. A metáfora fala por si mesma: nela está o universo posto em relação. Associada à metonímia, temos um dos ingredientes que mais nos encantam em qualquer livro. Boa parte do talento de escrever surge da propensão natural do escritor para a criação de metáforas que se encaixam perfeitamente na descrição e a que correntemente chamamos de inspiração.
  5. As grandes manifestações da alma humana na questão da ironia, da evocação do riso, na construção da sátira, do sarcasmo. Existem escritores famosíssimos que não têm o mínimo senso de humor. Outros, cujo humor é tão ralo, tão misterioso, que passa despercebido. Considere um autor celebrado como José Lins do Rego, e seu livro Fogo Morto. Trata-se de uma novela de cangaceiros, escravos e coronéis em que todos os personagens estão permanentemente zangados. Só há lugar para descontentamento, destempero, desejo de vingança, inveja e desentendimentos. Por todo o livro pervade o tom desesperador de uma sociedade desagregada em torno do caráter de seus personagens cruéis ou bobalhões. Não há uma linha de ironia, um parágrafo de humor, uma página burlesca. E o Brasil está cheio de clássicos carrancudos, de escritores sem traço de sátira, sem derivação ainda que fugaz para o jocoso, com uma seriedade de velório como se a literatura fosse a guardiã do espírito institucional do homem e não de seu mundo público, político e privado. Nada mais escandalizador na literatura do que a ausência de humor em uma época de liberticídio e de devassidão institucional. Eu não recomendaria Lins do Rego, a menos que fosse pelo conhecimento sociológico que sua obra oferece.
  6. O embasamento histórico, literário, filosófico, psicológico. O que distingue um autor de peso de um reles escrevinhador é a densidade psicológica dos diálogos, os cortes epistemológicos, a transversalidade do saber em que se move nas suas fontes. Um leitor erudito sente-se recompensado com a familiaridade do autor com seu mundo, e estes vínculos criam as simpatias. Para um leitor iniciante, ainda pouco familiarizado com a vida literária, isso pode ser a fonte de referências para prosseguir na satisfação de sua curiosidade intelectual. A melhor forma de se tornar culto é seguir as indicações daqueles escritores de que se gosta.

Quinto problema:

Uma grande obra literária precisa ser excelente em algumas das combinações acima, para não cair no lugar comum da escritura frívola e maçante da cultura de casquinha. A profusão de “romancezinhos” tem impedido o desenvolvimento do prazer estético em uma porção não desprezível de leitores. Associado ao vício das novelas de televisão, produz uma massa de consumidores infensos à cultura literária erudita, que ao fim termina repercutindo na imarcescível vulgaridade das instituições sociais onde inexiste o rigor, e onde o aplauso obsequioso se torna a moeda de troca corriqueira entre os pavões literários.

A má educação intelectual é reconhecida no leitor que “ouviu falar” e precisa fazer um esforço sobrenatural para conseguir chegar ao fim. De fato, algumas grandes obras são labirínticas e cansativas (Stern), mas existe uma diferença entre elas e o tédio provocado pela falta de interesse suscitado pela má educação, pois esta pode ser uma trajetória sem retorno para o indivíduo, que, despreparado, não poderá dizer com segurança por que um autor é melhor do que outro a não ser pela manifestação binária do gostei, não gostei.


Sexto problema:

Estes são os elementos que o leitor deve observar em um livro. Mas a moeda tem duas faces. Pode-se classificar a obra literária do ponto de vista do escritor. Ezra Pound classificava da seguinte forma:

  1. Inventores. Homens que descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo.
  2. Mestres. Homens que combinaram um certo número de tais processos e que os usaram tão bem ou melhor que os inventores.
  3. Diluidores. Homens que vieram depois das duas primeiras espécies de escritor e não foram capazes de realizar tão bem o trabalho.
  4. Bons escritores sem qualidades salientes. Homens que tiveram a sorte de nascer numa época em que a literatura de seu país está em boa ordem, ou em que algum ramo particular, em que a arte de escrever é “saudável”.
  5. Beletristas. Homens que realmente não inventaram nada, mas que se especializaram em uma parte particular da arte de escrever, e que não podem ser considerados 'grandes homens' ou autores que tentaram dar uma representação completa da vida ou da sua época.
  6. Lançadores de modas. Enquanto o leitor não conhecer as duas primeiras categorias, será incapaz de 'distinguir as árvores da floresta'. Ele pode saber que 'gosta', ser um verdadeiro 'amante dos livros', com uma grande biblioteca de volumes magnificamente impressos, nas mais caras e vistosas encadernações, mas nunca será capaz de ordenar o seu conhecimento ou de apreciar o valor de um livro em relação a outros, e se sentirá ainda mais confuso e menos capaz de formular um juízo sobre um livro cujo autor está 'rompendo com as convenções' do que sobre um livro de oitenta ou cem anos atrás.
    Ele jamais compreenderá a razão pela qual um especialista se mostra irritado ao vê-lo exibir pomposamente uma opinião de segunda ou terceira mão a propósito dos méritos de seu mau ator favorito.
    Até que vocês tenham feito a sua própria vistoria e o seu próprio exame detalhado, convém acautelar-se e evitar aceitar opiniões:
    a) de homens que não tenham, eles mesmos, produzido obra importante;
    b) de homens que não assumiram o risco de publicar os resultados de sua inspeção pessoal, ainda que o tenham feito seriamente.”

Os inventores são completamente desconhecidos da mídia. Eles podem ser falados depois de alguns anos ou décadas, mas em nossa cultura são considerados malditos. Os mestres só aparecem a partir de algumas casualidades ou pelas vinculações do autor com o mundo literário. O mestre pode ser qualificado: mestre da sátira (O Brasil pelo Método Confuso, de Mendes Fradique); mestre da crítica (toda a crítica de Sylvio Romero), etc. Os diluidores são os mais aplaudidos porque movimentam a indústria editorial e são apresentados como geniais. Os bons escritores sem qualidades salientes são os norte-americanos em sua maioria, todos técnicos experimentados na mídia, e em geral publicando a maior parte dos livros disputados pelo público.

A principal qualidade, segundo Ezra Pound, para que um escritor viva para sempre é poder dispensar as escolas e faculdades. Ele não viveu para conhecer as possibilidades de associação de leitores como nos nossos dias, que são capazes de manter vivos autores de todos os tempos e línguas.


Sétimo problema:

Nossa disjunção institucional reflete-se diretamente no problema da qualidade das traduções. Se não fosse um punhado de abnegados, não teríamos avançado muito nesta arte. Em todas as épocas existiram grandes tradutores em pequena quantidade, e muitos livros mal traduzidos.

Os “traditores” são uma praga tão grande quanto a falsificação planejada, proposta e aprovada pelo Ministério da Cultura, de uma obra de Machado (O Alienista de 1882), e outra de José de Alencar (A Pata da Gazela), que recebeu a inacreditável importância de mais de um milhão de reais para vulgarizar as expressões e produzir 600 mil exemplares para ser distribuídos gratuitamente pelo Instituto Brasil Leitor.

Essas decrepitudes literárias afrontam a sociedade em seus foros mais impensáveis. E não se vê a Academia de Letras, nem a Biblioteca Nacional protestarem contra o insulto que se acaba de cometer. Em poucos anos, a corrente, a doxa, os ventos e trabuzanas da idiopopulice foram capazes de trazer e vingar sementes que não pertencem ao mundo ocidental: em todas as épocas históricas, os menos dotados sempre se elevaram ao pedestal dos mais dotados.

Em toda a grande civilização, o mérito sempre foi premiado e como tal reconhecido através de seus grandes feitos. Falhava a civilização que desprezava seus gênios. Com o PT no poder, e seu populismo rasteiro e demagógico, lenta e progressivamente os menos dotados passaram a dar o tom na vida social.

A música, o cinema, as artes em geral ficaram sob o abrigo de uma nova classe de funcionários repulsivos, ideologizados para transgredir intencionalmente todas as normas e preceitos da tradição e da cultura, produzindo uma inundação de tolices que, paradoxalmente, no dia em que nos livrarmos deste pesadelo, serão os exemplos mais dantescos de nossa decomposição social, o relicário vergonhoso de desatinos que se avolumaram como resultado de uma sociedade dividida e paralisada em sua capacidade de se regenerar.

Espero que a exaustão nos leve a um renascimento, tal como o mundo viveu em 1945. Somente então os que puderem olhar para trás poderão perceber tudo o que ficou registrado de filosofalhas e literatolices.


14 de abril de 2014

Sylvio Romero - Nosso Maior Mal

De Provocações e Debates - pgs. 102-114

Nosso maior mal... A febre amarela? As secas do norte? O clima tropical? As oligarquias estaduais? A politicagem?

Não; nada disso.

Com serem coisas graves, muito graves até, podem ser atenuadas, a começar pela febre amarela, que vai desaparecendo... Não é, pois, desses flagelos que venho falar. O maior mal do Brasil, e não é cosa que lhe seja exclusivamente peculiar, porque muitos outros povos participam do mesmo achaque: é — pretendermos ser, como nação, como todo político-social, o que não somos realmente.

É um estudo de psicologia popular, de antropo-sociologia nacional que não tem sido feito e do qual darei apenas algumas linhas gerais.

Dá-se com as nações o que se dá com os indivíduos: a maior parte dos erros, dos embaraços, das decepções, das quedas, dos prejuízos, dos desastres e até da total ruína que cada um de nós comete, encontra ou sofre na vida, provém pura e simplesmente, quase sempre, desta coisa tão simples, tão rudimentar, tão indesculpável, — o desconhecimento de nós mesmos.

Cada um pode fazer a experiência e sairá edificado do exame. A inconsciência, em que a maior parte das pessoas vive das lacunas de sua inteligência, da insuficiência de seu saber, dos vícios de seu caráter, da fraqueza de sua vontade, — é a origem da precipitação, da leviandade, da arrogância, dos falsos cálculos, dos passos errados, das loucuras praticadas.

Pois bem; essa espécie de leviandade, de perigosa pedanteria acomete também o espírito coletivo, a índole dos povos. Assaz sofremos, nós os brasileiros, — desse mal.

Afigura-se-me ser ele, não a única fonte de nossos desastres, senão, certo, a mais considerável de todas. Nós brasileiros, entre muitas qualidades de bom quilate, entre muitos predicados merecedores de apreço, temos a fantasia demasiado inflamável, e, em se tratando peculiarmente de nosso valor, de nossas grandezas, de nosso prestígio, de nossas superioridades, de nossos progressos, de nossa cultura, de nosso papel no mundo, perdemos, com a mais singela, íntima e sincera confiança, o senso da realidade, a consciência das coisas e nos julgamos colocados no pináculo entre as nações.

Foi sempre assim. Desde os tempos coloniais, a datar do terceiro século da colonização, esse prazer, essa embriaguez dionisíaca, para falar com Nietzsche, por tudo quanto é nosso, foi a primeira ação reflexa embutida em nosso caráter pelo aspecto geral de nossa natureza.

Foi a primeira dádiva do meio — brilhante, colorido, matizado na terra por primavera imorredoura, no mar pelas doçuras intérminas dum glauco inigualável, no céu pela luz dum sol do qual se pode dizer que colabora com a gente, que preside ao trabalho, e bem merece o canto do poeta que lhe chamou de eterno concidadão que nos ajuda e conforta...

Ação fisiológica inconsciente, ainda reforçada pelos crepúsculos alucinantes de beleza, pelas noites embevecedoras de infinito, no palejar das estrelas, ou embriagadoras de intraduziveis aspirações, nos luares esplêndidos...

Desde Rocha Pitta a descrição do meio está feita e a característica da gente implicitamente traçada. Ao crítico e psicólogo, porém, incumbe a ingrata função de desfazer miragens, reduzir fantasias, dissipar ilusões. Pratica-o quase sempre com mágoa e dor, pois sabe que vai chocar preconceitos e suscitar cóleras e esconjuros. Mas há uma coisa, que para o crítico e psicólogo, sincero consigo mesmo e com o país, está acima de todas as conveniências de momento: a verdade estrita no interesse real, positivo do povo.

Este é o dever dos deveres, o primeiro mandamento do decálogo do patriotismo. Nas linhas que a estas se deverão seguir procurarei despretensiosamente apontar, muito de leve, os males que nos têm, a nós brasileiros, advindo desse, a primeira vista inocente, passatempo de nos darmos por bem mais notáveis e grandiosos do que na realidade somos.

Em todas as esferas das manifestações da atividade nacional se tentará descobrir os efeitos do mal. Política, estado social, direito, finanças, ensino público, literatura, economia nacional, indústrias, tudo passará rapidamente sob as vistas do leitor neste rápido estudo de etiologia popular.

É bem de ver que, neste despretencioso artigo, não poderei dar às teses demonstração documentada, largamente desenvolvida, como fora mister num livro, por exemplo, que tivesse de traçar o quadro real da situação brasileira.

Não poderei oferecer aos leitores senão proposições gerais apoiadas em provas singelas de facílima verificação.

Algumas dessas afirmações, ou melhor, quase todas elas — são simples postulados do bom senso geral que andam aí formulados em todos os espíritos. São proposições evidentes que andam de boca em boca.

Meu trabalho será apenas o de fazer uma síntese, enfiar as contas de um rosário que quase toda a gente tem manipulado.

Nosso maior mal, disse, é não termos a consciência positiva do que realmente somos e, muito ao invés disso, darmo-nos a nossos próprios olhos uma superioridade, uma grandeza, um poderio, um progresso, uma cultura, um adiantamento, uns predicados quase sem par por aí além entre as demais nações.

Dessa terrível inconsciência derivam males gravíssimos em todas as esferas da vida nacional: política, estado social, direito e legislação, finanças, ensino e educação, literatura, economia nacional, indústrias, e moral publica.

Comecemos pela política. Na presunção de sermos tão bons como os melhores, tão distintos como os mais distintos, tão cultos como os mais cultos, tão enérgicos como os mais enérgicos dentre os povos que se acham à frente da civilização moderna, vão-se prender na ordem política muitíssimos desvarios, erros e tropeços que nos têm causado e hão de ainda causar por muito tempo os maiores males. Entre eles avulta a leviandade infantil com que sempre nos temos embalado na doce ilusão de que para nosso andar desassombrado no mundo, fazendo nele a mais brilhante figura, não temos mais que copiar as constituições e leis dos povos mais cultos e transportar para cá as instituições que alhures deram os melhores frutos.

Se tivéssemos verdadeiro juízo e são critério, teríamos logo visto que institutos, aparelhos, órgãos políticos são a frutificação secular, e muitas vezes milenária, de funções nacionais formadas, desenvolvidas, selecionadas nas condições peculiaríssimas do viver de cada nacionalidade; não são coisas que se transplantem ao nosso bel-prazer.

Fazê-lo é dar provas da maior incapacidade criadora, da mais completa ausência de plasticidade para o meneio das coisas políticas. Fazê-lo é tomar a vacuidade retórica, retumbante, palavrosa de nossos parlamentares, que tem sido os chefes de nossos governos ou os inspiradores de nossas leis, como coisa séria, aproveitável, organicamente útil.

Desse formidável parto de nossa incapacidade real, enfeitada apenas em frases que a turba acha bonitas, origina-se o fracasso completo, radical, irreparável, exposto aos olhos da nação, de todas as instituições populares, transplantadas para o nosso meio, sem que presidisse à mudança a mais leve adaptação.

E nota-se até que quanto mais perto do povo devia ficar o instituto para ser por ele mesmo exercido em seu próprio proveito, maior foi a decadência, mais desastrada a ruína.

Deste número são: o júri, as câmaras municipais, as assembleias provinciais; o júri, que no Brasil se transformou em aparelho protetor de assassinos, ou seguro de vida para ladrões; as câmaras municipais, horrendas cavernas de Caco, terríveis ratoeiras para arrancar aos povos os últimos vinténs, enriquecendo pelo país em fora verdadeiros clãs locais de mandões insaciáveis; as assembleias provinciais mudadas agora em congressos e senados Estaduais, são guardas avançadas ao serviço das oligarquias, cujos interesses defendem com a espoliação muitas vezes, dos haveres das populações e sempre com o sequestro das liberdades públicas.

Não é só: entre os males de ordem política, devidos à nossa presunção de nos supormos o que não somos, destacam-se as duas constituições políticas, copiadas de modelos que somos incapazes de seguir com segurança e vantagens práticas: — a Constituição Imperial, liberalizante em excesso, não condicionada ao nosso meio; a Constituição Republicana, copiada por alguns fantasistas desarticulados, talentos inorgânicos, que sempre tiveram a simploriedade de confundir palavras com ideias...

Daí a pasmosa decadência do parlamentarismo, que se foi pouco a pouco transformando no famoso sorites de Nabuco de Araújo É famoso, na história do Brasil, o "sorites de Nabuco" – silogismo com o qual o primeiro Nabuco, José Thomás, descreveu o sistema político do Segundo Reinado: "O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí está o sistema representativo do nosso país". O sorites de hoje seria: "O presidente chama parceiros porque não consegue presidir sozinho; estes parceiros abrem espaço para a malversação e as falcatruas; a malversação e as falcatruas levam o governo a perder o rumo e a afundar num mar de escândalos" (Fonte: Revista Veja nr.1906). Daí esse presidencialismo repulsivo, de cujo ventre brotaram vinte e uma oligarquias ou satrapias fechadas, irredutíveis, verdadeiros clãs como os do País do Roubo em Marrocos, menos a coragem, o pitoresco e a poesia que vive ali nos tipos e nas coisas.

E há pior: como estamos cada vez mais a pensar que o Brasil se reduz todo ele a esta velha carcaça do Rio de Janeiro, que, como as mulheres de Jerusalém acreditavam que se salvavam só com o tomarem trajes garridos, imagina que só com a abertura de avenidas tem atingido todas as grandezas, no mais triste abandono jaz cada vez mais a educação política das massas, cujo caráter se tem, ao contrário, cada vez mais inconvenientemente aviltado.

Tem sido uma verdadeira lição de coisas: tem-se levado sistematicamente às massas a convicção que isto de vida política é coisa com que elas nada têm a ver; é um negócio de poucos, de alguns escolhidos, de raros privilegiados.

Basta o Bloco empoleirado no centro, os sátrapas nos Estados e está tudo feito...

Ora, a política, segundo a melhor definição que dela se conhece, — é, como ciência, a teoria da vontade popular, como prática, a realização desta vontade.

O Brasil desmente em absoluto tal verdade. A prova temo-la irrefragável neste fato vergonhosíssimo, cheio dos mais alarmantes perigos: a indiferença, o desinteresse, o alheamento completo em que andam as massas, o povo, as gentes todas de alto a baixo por seu viver como nação, seus destinos coletivos, suas funções históricas, suas aspirações ideais.

Dirigidos andamos por incapazes que exercem a sinistra função de lobrigar na política desta grande terra apenas as suas vantagens particulares, as suas vantagens deles, Bloquistas, Sátrapas, Oligarcas, Senadores, Ministros, Deputados... Mandões, Chefes de clã, tigres famintos que arrocham os pulsos aos povos, sufocam neles todos os nobres impulsos de ideal para melhor devorar-lhes as carnes.

Desta suprema degradação, origina-se o criminoso, aviltante e miserando abandono em que andam as eleições políticas no Brasil, o espetáculo mais desprezível que se possa deparar nos anais da humanidade.

Isto mesmo é que obriga os hediondos especuladores que entre nós têm o nome de Chefes Políticos, Chefes de Partidos, Estadistas, cuja ciência consiste em povoar o solo por decreto, criando repartições onerosíssimas; fomentar a agricultura, enviando vadios e nulos à Índia, à China e ao Japão para que nos ensinem como se planta café e se fabrica açúcar...

Um cúmulo !

Trataram de incutir o mais possível na crença do povo que ele é dos mais cultos e adiantados existentes na terra. Ora, se a multidão já é assim, que não será a elite dirigente? Que não serão os super-homens dessa gente? Verdadeiros gênios, assombrosas capacidades, aptos para meter no chinelo os maiores guias de povos que tem existido, os Alexandres, os Césares, os Fredericos, os Cromwels, os Bismarcks...

Mas a realidade é bem outra: ignorância, pauperismo, miséria, opressão reinam por toda a parte. A demonstração prática deste monstruoso estado das populações nacionais, desde a serra de Parima, ao norte, até o Quaraí, ao sul, é a coisa mais fácil, mais simples que possa existir e quase não precisa ser feita, porque está na consciência geral, e até na da gente do Bloco...

E é porque vivemos na fantasia de ser um grande, poderoso, riquíssimo, avançado, cultíssimo povo, tanto que (é a crença geral...) fazemos sempre a primeira figura em todos os congressos mundiais, e é porque, como consequência dessa miragem, julgamos os nossos estadistas prodigiosas cabeças, dignas da veneração universal, que, como os loucos que se julgam reis, não damos fé do deplorável estado em que nos debatemos.

Este sistema de iludir e consolar é, consciente ou inconscientemente, mantido pelos poderosos desfrutadores da política e do trabalho do povo brasileiro.

Não lhes convém que a nação abra os olhos; porque, no dia em que ela tiver a vista clara de sua deplorável situação, a vista clara produzida, não por essa instrução palavrosa, superficial, falsa, cheia de mentiras, aleatória de toda a masculinização e dignificação da vontade que se inocula sistematicamente nas gerações novas, mas por uma educação em que se incuta na alma dos moços que o caráter é a primeira força social, porque nesse dia ruirá por terra a infamante politicagem bloquista que nos avilta.

Não haverá mister de derramar sangue: basta que alguns milhares de homens, em dia de eleição, saiam à rua decididos a exercer com firmeza, coragem, verdade, o seu direito de voto, no intuito de expulsar das altas posições executivas e parlamentares os nulos, os prevaricadores, os traficantes.

Mas assim como para fazer uma fritada são indispensáveis os ovos, para fazer uma boa eleição são de primeira necessidade — quem vote e em quem se vote. É o que não temos, nunca tivemos e não teremos tão cedo no Brasil: porque nós não temos tido até agora, e não a teremos facilmente uma disciplina deliberada do caráter nacional, e a consciência iniludível de uma função histórica a desempenhar.

Temos estado nas condições descritas pelo poeta, de:

— Sermos um povo rebanho
Sem aprisco e sem pastor.

O que disse da política, desvirtuada entre nós por nossa fatuidade de querermos passar por um grande povo, estando ainda muito longe de sê-lo, o que importa dizer que deixamos de curar de nossos males, correndo atrás de aventuras, o que disse da política se repete, mutatis mutandis, de tudo o mais. É a esse vezo que, na ordem social, em vez de cuidar de arrancar da barbárie as populações do interior, de espalhar o ensino e fortalecer a educação, tratamos apenas de embelezar a capital, principalmente para com isso iludir o estrangeiro.

É a esse vezo que devemos a importação de um socialismo espúrio que ainda nos há de trazer dias aflitíssimos. Pelo que toca ao direito e legislação, é a esse desvario que devemos o não estudar as necessidades práticas de nossas gentes e entrarmos a copiar atabalhoadamente as leis estrangeiras, sem a menor adaptação a nosso atrasadíssimo estado de cultura, além de outros disparates ainda maiores.

No que se refere ao ensino público, é a nossas ilusórias fumaças de possuirmos enormes talentos, eminentíssimas capacidades, proficientíssimos mestres, que havemos de atribuir o desprezível estado de abatimento em que ele tem caído.

Para a mais elementar instrução primária, como para a mais elevada e superior, passando pela secundária e pelas aplicações técnicas, há muito deveriam os governos ter contratado no estrangeiro mestres de verdade. É principalmente o que nos falta. Disto havemos mister muito mais do que de fortes e poderosos couraçados.

Na literatura é a mania de tão bom como tão bom — que leva toda a gente a desprezar os assuntos nacionais, nossas tradições, nossos costumes, todos os aspectos em suma, d'alma do povo em todas as classes para andar a sonhar com os eslavos de Tolstói os escandinavos de Ibsen, os germanos de Nietzsche...

O mais elementar bom senso está a indicar que desses grandes mestres o que nos aproveita é o próprio exemplo, isto é, estudar a alma de nossas gentes, como eles estudaram as de seus patrícios.

No que se refere a finanças, basta mostrar que é onde a fátua pretensão que venho apontando tem acumulado maiores destroços. Todas essas loucuras de impostos sobre impostos, lançados às populações já exaustas; todos esses empréstimos sobre empréstimos, malbaratados em obras de luxo; essas exposições fantásticas e mentirosas; essas embaixadas de ouro; essas encomendas de formidandos navios de guerra, iguais ou maiores que os da Inglaterra, dos Estados Unidos e da Alemanha, não tem outra origem: aparentarmos o que não somos, — custe o que custar... É o cúmulo da insânia.

Quanto à vida econômica geral da nação, os desastres acumulados pela fatal moléstia são terribilíssimos. Desacostumou-se, com o sistema dum protecionismo criminoso, o povo do exercício natural das suas atividades econômicas conforme as zonas do país: numas o pastoreio, noutras a pesca, nestas a mineração; naquelas a lavoura do café ou do algodão, ou do tabaco, ou da cana, ou dos cereais; aqui os frutos arborescentes, além as plantas extrativas, etc. etc.

Em lugar disto, teima-se em criar uma indústria de estufa, que só serve para pagarmos caríssimo os mais grosseiros artefatos. São os nossos progressos...

Claro é que todas estas teses poderiam ser largamente esplanadas. Meu fito foi apenas formular, de leve, a lista dos prejuízos que sobre nós desencadeia a mais fatal de nossas moléstias, o nosso maior mal: a mania de passar pelo que não somos.


Janeiro de 1908.


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